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Taxem os ricos!

Tentativa de se impor um teto à riqueza ganhou força com a pandemia

André Roncaglia

Em seu discurso de posse no domingo (1º), o presidente Lula contrastou a fila do osso no açougue com a fila nas concessionárias de carros de luxo. Poucos dias antes, a Assembleia Legislativa de São Paulo decidiu reduzir de 4% para 1% o imposto sobre heranças no estado. Estes eventos reacenderam o debate sobre a injustiça social no país.

Desde as infames Leis dos Pobres na Inglaterra do sé culo 19, foi longo e tortuoso o caminho para se impor um piso à pobreza, por meio de programas de proteção social. A tentativa de se impor um teto para a riqueza ganhou força com a pandemia. O maior número de bilionários contrastou com as centenas de milhares de famílias vitimadas pelo vírus. Esse contexto reforçou o apelo social de impostos sobre patrimônio dos mais ricos, em particular o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).

Sistemas tributários com maior participação da arrecadação sobre patrimônio têm melhor desempenho econômico. Além disso, impostos sobre heranças e doações, sobre riqueza financeira e imobiliária elevam o grau de isonomia e a progressividade da tributação. Neste sentido, o IGF é um instrumento indispensável.

O estado da arte sobre o tema é apresentado no livro Progressividade Tributária e Crescimento Econômico, organizado por Manoel Pires (IBRE-FGV e UnB). A experiência internacional mostra limitado potencial arrecadatório em termos do PIB. As razões estão na base de incidência sobre uma camada muito restrita no topo da distribuição, mas também no mau desenho do imposto e no pouco esforço de fiscalização.

Em contexto de maior mobilidade de capitais e amplo acesso a paraísos fiscais, acredita-se que imposto afugenta a riqueza. Estudos mostram efeitos heterogêneos entre países, bem como há evidências de que este risco de fuga seja superestimado (home bias). De qualquer forma, a focalização nos ricos requer uma alíquota moderada para evitar distorções potenciais de alocação de recursos e comportamentos evasivos.

Além da capacidade de evasão, os grupos abastados têm grande influência sobre a opinião pública. A pressão política pode restringir a base de tributação (excluindo-se ativos e elevando o limite de isenção), reduzir a alíquota e a duração do tributo (taxar uma única vez ou em contextos de calamidade).

Mesmo assim, vale a pena enfrentar o desafio. Por ser um tributo sobre riqueza líquida (ativos menos dívidas), pode-se elevar a progressividade no topo da distribuição. Em sua ausência, famílias com patrimônio elevado, mas renda baixa, podem ficar sub-tributadas em termos relativos. A digitalização é importante aliada na redução do custo administrativo em monitorar e fiscalizar a riqueza no topo.

O caso brasileiro exubera injustiça tributária e, por isso, oferece boas condições à aplicação do IGF. Os superricos pagam 5% de alíquota efetiva de IR sobre sua renda e têm quase R$ 7 em cada R$ 10 da sua renda anual isenta de impostos. A imagem piora ao subir a pirâmide. O 0,01% mais rico da população detém cerca de 20% da renda total do grupo. Neste grupo a isenção pode atingir 90% da renda pessoal.

A Constituição prevê a instituição do IGF no inciso VII do artigo 153. Desde 1989, mais de 40 projetos de lei foram apresentados ao Congresso Nacional para regulamentar o imposto. As propostas mais recentes propõem taxar fortunas acima de R$ 20 milhões, com alíquotas que vão de 0,5% a 1%. As 220 mil pessoas afetadas pelo imposto representam 30% da riqueza declarada no IRPF.

Modulações de limites de isenção e de alíquota afetam o potencial de arrecadação. Uma proposta prevê isenção a patrimônios menores que R$ 5 milhões e estima R$ 40 bilhões (0,4% do PIB) em recolhimentos.

Por não ser uma bala de prata, o IGF deve integrar um arranjo mais amplo de tributação sobre patrimônio. Ao produzir maior progressividade, ele pode reduzir a injustiça tributária no Brasil. E isso já é um bom começo.

Fonte: Folha Uol