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Quanto vale um vereador?

gilmar cardoso

Gilmar Cardoso

O editorial da Gazeta do Povo, edição de 24 de agosto, com a indagação – quanto vale um vereador – deve levar–nos à reflexão sobre o tema, pois, com razão afirma numa análise sem modismo ou paixão momentânea, dentre outras coisas, que “obviamente, resumir o trabalho dos vereadores a apenas nomear ruas, criar festas, homenagear pessoas e super-regular o dia a dia da cidade é uma generalização injusta. (…) A discussão sobre os salários dos vereadores é pertinente, mas é preciso tomar cuidado para que não caia na demagogia”.

“Ter em conta a realidade do município é importante para que os vencimentos não sejam descolados da média local; ao mesmo tempo, nos casos em que a vereança exija dedicação integral,é necessário que o salário não seja tão baixo a ponto de desestimular pessoas boas que poderiam ser atraídas para a política, e nem tão alto a ponto de atrair aqueles interessados apenas nas benesses do cargo. – e conclui com acerto a análise – Independente do desfecho da polêmica em cada cidade, uma lição já aprendida é a de que o cidadão precisa prestar mais atenção ao Poder Legislativo municipal: não só quanto ganham, mas o que estão fazendo aqueles que foram eleitos para representar a população na instância que está mais próxima dela”.

Com a tese sobre o papel do vereador no estado de direito no Brasil: a defesa dos subsídios como equação democrática, Charlise P. Colet Gimenez e Osmar Veronese, no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Univali, de Itajaí-SC, discorreram sobre a matéria destacando que é comum ouvir a defesa de que alguns cargos políticos, especialmente a vereança, seja exercido sem qualquer retribuição pecuniária. Na época em que vivemos, de manifestações populares, em que a sociedade em rede nunca foi tão real, essas teses tendem a angariar imensas simpatias.

A gratuidade do mandado legislativo é incompatível com a democracia moderna. A retribuição pecuniária aos representantes do povo pelo exercício da função pública é uma medida justa e necessária. Primeiro, sem essa remuneração o poder seria monopólio dos ricos, dos que não a necessitam, ou pelo fato de serem individualmente afortunados, afastando-se de seus afazeres, levando ao parlamento a defesa de seus interesses e dispensando qualquer retribuição pública direta, ou por serem financiados por grandes empresas, cujos interesses pautarão sua atuação no mandado representativo (de quem?). Assim, resulta evidente que o abandono, mesmo que não integral, das atividades particulares para cuidar dos negócios públicos, merece ser compensada, até pelo pressuposto de que todo trabalho deve ser remunerado.

Segundo, o não recebimento de remuneração é potencialmente capaz de vulnerar a função, deixando o eleito mais suscetível de “cair em tentação”, quer dizer, facilita a corrupção. Caso receber do público, em tese possuirá um compromisso público maior, estando menos sujeito à venda das convicções. Em recebendo do privado, direta ou disfarçadamente, entabulará compromissos antes com o privado. Não faz falta o subsídio a quem transforma a função legislativa em balcão de toda sorte de negócios. Na melhor das hipóteses, a existência de partidos fortes poderia sustentar uma atuação parlamentar independente, o que não é o caso do Brasil, cujos partidos fortes são, na maioria dos casos, amplamente endividados, comprometendo-se, em algumas situações, com a defesa de interesses divorciados do público e do ético.

Terceiro, nem sempre a fortuna sorri à capacidade intelectual e à inteireza de caráter, de modo que a falta de meios de sustentação tenderia a afastar da disputa os maiores talentos, probos e sinceros, e a produzir câmaras repletas de políticos profissionais, no pior dos sentidos. Assim como a riqueza não é título de capacidade, a pobreza não pode ser causa que inabilite. Os próprios incorruptíveis, aceitando a investidura, provavelmente seriam desleixados, atentos a outros interesses, pegos de surpresa nos debates das questões mais importantes por falta de tempo para se dedicarem ao exercício da função pública.

Quarto, é ilusória a crença de que a gratuidade é capaz de aportar prestígio e respeitabilidade ao parlamentar. Há muitos cargos e funções públicas exercidas na maioria dos países, remuneradas e prestigiadas, como magistrados, membros do Ministério Público, de modo a não haver qualquer relação direta entre alteridade popular do exercício de determinada função e retribuição pública.

Quinto, embora uma provável pesquisa de opinião pública tenda a indicar a contrariedade do povo ao pagamento dos vereadores pelo exercício da função, é preciso reconhecer que a história está repleta de exemplos de remuneração parlamentar desde Atenas até a França e os Estados Unidos, verdadeiros modelos democráticos a inspirarem outros sistemas assemelhados. Já no começo do século passado, se defendia a retribuição do parlamentar como um meio de garantir a liberdade dos eleitores como um meio de escolher entre um amplo aspecto de possibilidades.

Em suma, mesmo nutrindo imenso respeito a muitos que defendem com boa fé posição contrária a aqui exposta, há muita demagogia em torno da possível gratuidade do exercício de cargos públicos, não sendo conveniente estimulá-la com o simples propósito de guardar sintonia com a opinião pública, até porque, em nome dessa “coerência”, muitos inocentes foram queimados em “fogueiras públicas” ou devorados por animais. Calha sublinhar a resposta insuscetível de retificação dada pelo diplomata francês Talleyrand, quando lhe falaram de um jovem que se propunha a ocupar gratuitamente um cargo: “Ele não pede nada? Então custará muito caro”. Resulta evidente que, na maioria dos casos, potencializa-se o adágio popular de que “o barato sai caro”!

Além disso, por razões que sequer é necessário declinar, não é possível aceitar como parâmetro o período da ditadura militar, época em que os vereadores trabalhavam de graça. Também o vilipêndio a determinada carreira, verdadeira aposta na manutenção dos desqualificados e desmotivados, seja pública ou privada, passa pelo aniquilamento da remuneração. Será que se quer os representantes do povo, no município, sejam a imagem social da miséria?

De outra banda, o exercício de um direito não deve se confundir com seu abuso, de modo que o direito à remuneração, ao lado de outras garantias, deve estar a serviço da liberdade e da independência da instituição parlamentar, nunca ser objeto de enriquecimento (ilícito!), à custa do erário e, por extensão, do contribuinte, ainda mais em uma época em que a administração pública se submete aos princípios da moralidade e eficiência, os quais só são efetivados com uma gestão austera, capaz de servir de exemplo aos demais setores da sociedade. Em razão do exposto, pode-se concluir ser o exercício da vereança brasileira digno de remuneração justa, quer dizer, nem ínfima, nem exagerada.

Com o Movimento Vereador Sem Salário ou às vezes Vereador Com Salário Mínimo, em todas as divulgações, as opiniões publicadas vibraram, e fizeram coro para que se reproduza pelo país, como se um bom exemplo fosse, nascendo daí o desafio para nós, de entender o que pode estar por detrás disso. Defender o fim do subsídio do legislador municipal, seria o mesmo que afirmar o seguinte: – pagar vereador para quê, já que estes nada fazem!? Não há outro sentido a se extrair destas entrelinhas. E aí é que mora o perigo, ainda que não tenhamos nos apercebido.

Cito um interessante fato histórico, que é solenemente desconhecido por moralistas de plantão: foi a remuneração dos legisladores eleitos que permitiu, desde o Século XIX, que representantes eleitos pelas classes trabalhadoras e mais pauperizadas exercessem livremente o mandato. Isso permitiu acabar com o monopólio do voto e da elegibilidade censitária – só quem tivesse patrimônio podia votar e se candidatar, como no Brasil do I Império. E isso abriu portas para o sufrágio universal, base estruturante do nosso princípio democrático. Essa prerrogativa é fundamental e essencial para a democracia representativa no Estado Democrático de Direito. Vulnerá-la e amesquinhá-la por circunstâncias morais frágeis é violar a cláusula democrática em sua essência; é apequenar o próprio poder legislativo. Tempos difíceis.

A julgar pelo raciocínio aplicado nestes exemplos, aguardo o chamado para os movimentos contra os “salários” dos deputados, juízes, senadores, prefeitos etc. Ainda não recebi também o convite para a manifestação contra os auxílios moradias de “apenas” R$ 4 mil por mês, e a fixação geral de um salário mínimo para todos. Não, eu não sou contra. Pelo contrário. Todavia, só me pareceria mais coerente, a julgar pelo critério até aqui publicizado e popularizado.

O Brasil não passa de uma soma de municípios. União e Estados são ficções jurídicas, necessárias para a organização e bom funcionamento do país, é verdade. Todavia, convenhamos, a vida acontece mesmo é no município, e é justamente o seu conjunto de habitantes que formam o Estado e o País.

Daí porque as questões de interesse municipal são tão importantes quanto a de impacto nacional e estadual, de modo que uma não se conjuga sem a outra. São interdependentes. Digo mais, no município, deve se pensar e agir localmente, para impactar globalmente.

Nesse cenário, sobressai indispensável a figura do legislador local. Não sem propósito, o vereador é o primeiro político do país, e que sobreviveu a todos os tipos de Estado e Regimes, exatamente porque, nesta condição, é o político que em primeiro contato está com a sociedade, e que por primeiro conhece seus desafios e problemas.

Um verdadeiro síndico da comunidade, viabilizando a administração e o convívio social (função de assessoramento municipal). Experimente retirar o síndico de seu prédio, para ver o que acontece?! Mais do que isso, o vereador é também quem julga o prefeito (função julgadora), e, sobretudo, fiscaliza o dinheiro público (função fiscalizadora), além de fazer leis de sua competência (função legisladora).

Talvez não nos demos conta de que acabar com “salário” do vereador ou pagar um valor que lhe retire a autonomia e independência exigidos ao cargo (mesma autonomia que outras autoridades precisam ter, como juízes, promotores, prefeito, delegados, etc), no final das contas poderá criar uma realidade pessoal ainda mais perversa da que as vezes já vemos hoje.

Então quer dizer que os juízes, promotores, deputados, prefeitos, fiscais etc etc, ganham bem porque necessitam de autonomia e independência para o desempenho de suas funções. Quer dizer que o vereador (que também é fiscal) não?

Se os poderes são iguais e se não há um maior que outro, porque então não fixar os subsídios dos demais cargos e poderes também em um salário mínimo, já que, axiologicamente e em certa medida, constitucionalmente equiparados?

Sim, eu sei. A questão de fato não é essa. Realmente, o equilíbrio da democracia tem um custo. O funcionamento do Estado também. O problema é que muitos movimentos atiram no que vêem (ou são levados a ver), mas acabarão acertando no que não vêem, ou seja, a própria democracia e a defesa dos interesses do povo, soberano que deveria se manter.

São tempos estranhos.

No caso dos vereadores, é preciso razoabilidade, ponderação. Quando a sede de justiça é exagerada, vira justiçamento, e certamente se voltará contra aqueles que o desejam. Se insistirmos em trocar o sistema e os cargos, quando o que se quer é trocar as pessoas, acabaremos por “jogar a água suja com a criança dentro”. Oxalá este banho não demore tanto.

Para isso, obviamente que o legislador precisa de independência e autonomia para realizar sua função. Se o seu vereador não faz isso, o problema não é o cargo, e sim a pessoa. Troque-a! Mas não apequene o cargo. Não estrangule esta função essencial de fiscalização e defesa primeira da comunidade.

Gilmar Cardoso, advogado, poeta, membro da Academia Mourãoense de Letras e do Centro de Letras do Paraná

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