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O mito das 3 Dilmas que nunca existiram

O mito das três Dilmas que nunca existiram

Daniel Pereira, Veja

Eufórico, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva desfiava seu rosário de palavrões prediletos para comemorar o sucesso de um leilão de concessão de rodovias, que, segundo a oposição, seria um fracasso. Era 2007, o primeiro ano de seu segundo mandato. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), sua principal bandeira de marketing, já estava nas ruas. E o encantamento com a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, celebrada como a responsável pelo resultado do leilão, só aumentava. Aos olhos do presidente, Dilma enquadrava a burocracia, tirava projetos do papel, destravava investimentos, fazia o governo acontecer. Era a novidade. A melhor novidade. Por isso, anos mais tarde, com nomes históricos do PT abatidos pelo mensalão, Dilma, “a mãe do PAC”, “a mulher do Lula”, “a gerentona”, foi escolhida para ser a candidata à Presidência. O plano era ambicioso: em mandatos sucessivos, Lula e Dilma garantiriam ao partido pelo menos vinte anos no poder, curiosamente o mesmo número cabalístico que os tucanos pretendiam ficar no governo depois que Fernando Henrique Cardoso foi reeleito. O foco de Dilma, uma vez eleita, seria melhorar a infraestrutura do país, sem inventar moda na política ou na economia. Uma meta simples. Nada podia dar errado. Mas, como se sabe, tudo deu errado.

Eleita com 55,8 milhões de votos em 2010, Dilma estreou como presidente promovendo a defunta “faxina ética”. Em apenas um ano, demitiu seis ministros suspeitos de tráfico de influência, corrupção e desvio de verbas públicas. A comparação com Lula, defensor obstinado de companheiros encrencados, era inevitável e lhe rendia dividendos. Setores tradicionalmente refratários ao PT estendiam o tapete vermelho para ela. Lula acompanhava esses movimentos com um pingo de desconfiança. A petistas ressabiados, dizia que Dilma, ao usá-lo como escada, engambelava setores conservadores da sociedade, conquistava a simpatia da mídia e se fortalecia. Além de competente, seria esperta. Em 2012, surgiram os primeiros ruídos entre os dois. Agindo de modo republicano, Dilma desprezou a ideia de Lula de usar uma CPI do Congresso para intimidar a imprensa e o Ministério Público. O contraponto com o antecessor, de novo, era inevitável.

Em março de 2013, a presidente bateu recorde de popularidade. E justamente aí começou sua derrocada. Mandona, centralizadora e irritadiça, Dilma tornou-se imperial. Enviava projetos ao Congresso para aprovação – sem direito a debate, afago ou cafezinho com os parlamentares. Na economia, recorreu à batuta do intervencionismo e determinou a redução, na marra, das taxas de juros e da conta de luz, e ainda tentou tabelar o lucro de empresários, emperrando uma série de projetos. A inflação já dava seus primeiros galopes. Apreensivo, Lula passou a mandar recados à sucessora.

Os porta-vozes do petista ecoavam as queixas do empresariado contra a mão pesada da presidente e defendiam uma troca de comando no Ministério da Fazenda. Dilma, cuja dificuldade para reconhecer os próprios erros tem contornos patológicos, ignorava olimpicamente as advertências. Foi assim até as históricas manifestações de rua de junho de 2013, que dinamitaram sua popularidade. Do centro do ringue, Dilma foi jogada às cordas. Aproveitando essa fragilidade, petistas e empresários, como Marcelo Odebrecht, preso pela Operação Lava-Jato, lançaram um movimento para trocar Dilma por Lula como candidato à Presidência em 2014. Alegavam que Dilma estava tirando a economia dos trilhos. A presidente, tratada agora como incompetente e amadora, resistiu à pressão, manteve-se no jogo e, cumprindo sua própria profecia, fez o diabo para conquistar um novo mandato.

De olho na reeleição, Dilma cometeu três pecados capitais. Abandonou de vez a faxina ética, rendeu-se gostosamente ao toma lá da cá e formou uma aliança eleitoral com os principais expoentes do fisiologismo nacional. Demitidos em 2011, os ex-ministros Carlos Lupi (PDT) e Alfredo Nascimento (PR) recuperaram as credenciais para mandar e desmandar em seus feudos no governo. A presidente também gastou muito mais do que podia e arruinou as finanças do país a fim de impulsionar programas carreadores de voto, como o Bolsa Família. Antes e depois da reeleição, usou bancos públicos para custear despesas do Tesouro Nacional. A prática, conhecida como pedalada fiscal, embasou o pedido de impeachment.

Reeleita, Dilma enfrentou pela primeira vez uma oposição implacável, que não lhe deu nenhuma chance de governar. Diante disso, a presidente cometeu novos e graves erros. Adotou a política econômica do adversário, selando um brutal estelionato eleitoral. Sob a batuta do marqueteiro João Santana, também preso na Lava-Jato, Dilma prometera calmaria na economia, quando, na verdade, semeara as bases para a maior recessão dos últimos trinta anos.

Dilma foi reeleita com 54,5 milhões de votos em 2014. No segundo mandato, a faxineira ética deu lugar à balconista de negócios. A gerentona, em vez das obras redentoras do PAC, entregou inflação na casa dos dois dígitos e desemprego crescente, que castiga 11 milhões de brasileiros. Entrou em cena a terceira versão de Dilma – a “vítima”. Desde o início da Lava-Jato, Lula cobrava da sucessora empenho para deter o avanço das investigações. A presidente, dando ouvidos ao ministro Aloizio Mercadante, aliado fiel, preferiu achar que o petrolão abateria cabeças coroadas do PT e do Congresso, mas não chegaria a ela. A estratégia de distanciamento durou até a prisão de Marcelo Odebrecht, em junho passado.

Dilma foi lembrada de que a Odebrecht pagara pelos serviços do marqueteiro João Santana. Ou ela reagia ou seria tragada pelas denúncias. Na surdina, a “vítima” passou a criar embaraços às investigações. Na mais evidente, condicionou a indicação de um ministro do Superior Tribunal de Justiça ao seu compromisso de libertar Marcelo Odebrecht, cujos segredos poderiam implodir a República. Como se ficou sabendo na gravação de uma conversa de Mercadante, o governo temia que delações premiadas viessem a “desestabilizá-lo”. Dilma ainda nomeou Lula para o cargo de ministro, de modo a salvá-lo da prisão. A isenção de Dilma se tornara uma muleta retórica.

Executivos das empreiteiras Andrade Gutierrez, UTC e Engevix afirmaram que foram pressionados a fazer doações para a reeleição de Dilma, sob pena de perderem seus contratos com a Petrobras. Dilma, até onde se sabe, não embolsou propina nem recebeu favores pessoais de corruptores, mas se beneficiou do esquema em termos eleitorais, tal como Michel Temer. Seu afastamento do cargo foi precedido pela decisão da Procuradoria-Geral da República de pedir autorização para investigá-la por obstrução da Justiça. Em conversas reservadas, Lula continua a desfiar seu rosário de palavrões prediletos – agora dirigidos também à presidente afastada, como se ele nada tivesse a ver com as Dilmas que nunca existiram.