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Mato Grosso do Sul registra suicídio de um índio a cada dez dias

Mato Grosso do Sul registra suicídio de um índio a cada dez dias

Cleide Carvalho – O Globo

SÃO PAULO – Seis índios guarani-kaiowá se suicidaram só este ano no Mato Grosso do Sul, elevando para 40 o número de suicídios de integrantes da etnia no estado, entre janeiro de 2008 e fevereiro deste ano, registrados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Outros 45 foram assassinados no período, três deles este ano. O número de suicídios é alarmante: uma morte a cada 10 dias. O último caso foi o de um jovem de 19 anos, que se enforcou em fevereiro dentro da Usina Quebra-Coco, no município de Sidrolândia, a 90 km de Campo Grande. P.G, achado morto pelo sogro, é um dos 18 jovens da aldeia, com até 20 anos de idade, que tiraram a própria vida de janeiro de 2008 para cá.

– A gente não foi preparado para enfrentar essa pressão – diz Anastácio Peralta, integrante da etnia e líder índigena.

A população de índios no Mato Grosso do Sul é a segunda maior do país, atrás apenas do Amazonas. Cerca de 70 mil índios vivem no estado, dos quais 40 mil são guarani-kaiowá. A maior parte dos suicídios – e dos assassinatos – ocorre na aldeia Bororó, em Dourados, a 225 km de Campo Grande, onde cerca de 13 mil índios vivem confinados num espaço de 3.500 hectares, sem condições de plantio. Com pouco espaço e a mistura de famílias numerosas que antes viviam em outras áreas do estado, a aldeia se assemelha a um caldeirão prestes a explodir.

" Os suicídios são consequência do desespero. Os índios estão confinados num espaço pequeno, onde não conseguem sobreviver "

A situação dos índios em Mato Grosso do Sul foi classificada como a mais trágica e preocupante do país em documento divulgado neste fim de semana pela 47ª Assembléia da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Segundo o documento, 213 casos de demarcação de terras indígenas no país, de um total de 846 catalogadas pelo Cimi, sequer tiveram iniciados os processos legais de tramitação. "Se não forem tomadas medidas imediatas, mais um genocídio chegará a se consumar em pleno século XXI", diz o documento sobre a situação dos guarani-kaiowá.

– Os suicídios são consequência do desespero. Os índios estão confinados num espaço pequeno, onde não conseguem sobreviver. É preciso que as autoridades parem de empurrar com a barriga as discussões em torno do assunto, inclusive a aprovação do Estatuto do Índio – diz Erwin Kräutler, presidente do Cimi e bispo do Xingu.

Na semana passada, uma índia de apenas 13 anos de idade, grávida de seis meses, foi resgatada de um cativeiro onde era mantida por dois índios, um deles de 70 anos. Não se sabe ainda quem engravidou a menina. O índio Anastácio Peralta diz que a aldeia já não abriga apenas índios guarani-kaiowá ou terenas, agrupados todos num único espaço, mas homens que vivem na região e acabam se casando com as jovens das tribos.

Egon Heck, coordenador do Cimi em Dourados, conta que o alcoolismo e a violência são crescentes, decorrentes da falta de perspectivas do povo guarani-kaiowá.

– Em agosto passado, a Funai designou uma equipe para percorrer e identificar as áreas que pertencem aos índios e estão ocupadas por grandes fazendas produtoras de soja e cana-de-açúcar, mas ela enfrenta a resistência dos empresários, que recorrem à Justiça para impedir a entrada dos integrantes da comissão – diz Heck.

No total, cerca de 30 mil hectares do estado são áreas ocupadas por índios, mas a disputa por terras é diária.

Segundo dados do governo do estado do Mato Grosso do Sul, atualmente 14 usinas de açúcar e álcool estão operando. Até 2015, serão mais 28 unidades industriais em funcionamento. Uma das últimas a receber incentivos do governo do estado, a Usina Terra Verde Bioenergia, de Nova Andradina, anunciou produção plena em 2011 e capacidade para moagem 3,5 milhões de toneladas de cana ao ano.

Assim como o jovem P.G, centenas de índios têm se submetido a trabalhar nas usinas de cana-de-açúcar para sobreviver. A situação, porém, repete até hoje o estigma dos índios no descobrimento do Brasil:

– Os fazendeiros acusam a gente de preguiçoso, dizem que a gente não sabe trabalhar igual a eles. Dizem que a gente atrapalha o progresso. A gente trabalha para sobreviver. Na aldeia, planta mandioca e milho, mas falta espaço – explica Peralta.

De acordo com Heck, no município de Antonio João, na fronteira com o Paraguai, as terras indígenas já demarcadas somam 9.300 hectares. No entanto, cerca de 700 índios vivem num espaço de 100 hectares, já que os empresários brigam na Justiça pela posse. Estes índios foram despejados em 2005 da reserva Ñande Ru Marangatu por uma liminar do então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, num mandado de segurança movido pelo pecuarista Pio Silva e mais 15 pessoas que detinham título de propriedade terra na área demarcada. Os 100 hectares só foram cedidos depois que os índios passaram seis meses acampados à beira da MS-304, que corta a cidade. Durante este período, o acampamento foi atacado e um índio foi morto.

Um levantamento realizado pela Procuradoria Regional da República da 3ª Região (PRR-3) indica que 87 processos envolvendo disputa de terras indígenas tramitam no Tribunal Regional Federal (TRF-3), em fase de recurso. As ações são movidas por fazendeiros que tentam impedir a demarcação de territórios indígenas pela Funai. Nos processos, eles pedem que a Justiça reconheça a posse de terra em favor de fazendeiros ou declare que suas fazendas não foram tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Sem solução à vista, a situação tende a se agravar, alerta o bispo Erwin Kräutler.

A aldeia Bororó está cercada por plantações de cana e soja. Segundo o índio Peralta, que integra o Conselho Nacional de Política Indigenista, os índios querem que seja apressada a identificação de áreas ocupadas por seus antepassados, para que parte delas retornem às etnias.
– Nossa situação é pior do que a dos sem-terra. A gente não tem a luta no modelo do branco, fica esperando, esperando… Queria que a Justiça tivesse um olhar para a gente, respeitasse nosso direito. Aqui não se respeita, dizem que a gente só dá prejuízo – lamenta Peralta, referindo-se às ocupações dos sem-terra.

Aos 48 anos, pai de três filhos, avô de três netos, Peralta diz que seu filho mais velho já vive a nova realidade e trabalha numa usina da região. Engajado no movimento indígena, ele hoje cursa Pedagogia, mas toca roça numa aldeia das aldeias sul-matogrossenses, no Tiju.

Peralta reconhece que, fora a desesperança, a violência assola as comunidades indígenas do estado e pede parceria da Polícia Federal para aumentar a segurança nas aldeias, afastando os traficantes de drogas.

– O cacique não dá mais conta. Hoje o índio cumpre pena, no modelo do branco. Mas quem quem vai cumprir pena na sociedade do branco sai pior. Preferia uma punição que recuperasse, na família. Antes, quando o índio errava, tinha de rezar, trabalhar na roça, cantar à noite, carpir e seguir o conselho dos mais velhos. Agora, não resolve mais, a cultura foi enfraquecida – admite. 

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