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Farofada à francesa

por Álvaro Borba, no abcuritiba.com

Há cadeiras de praia em frente ao número 2349 da Avenida Bispo Dom José.  Há um isopor com bebidas geladas e, contraditoriamente, tambem há guarda-chuvas abertos. Todos os itens pertencem a um grupo de meia dúzia de pessoas.  Já passa do meio dia quando eles decidem deixar o lugar. “Vamos em busca de um ponto que ofereça uma visualização mais fácil”, diz Luan de Rosa, um rapaz de ralos pelos faciais que não aparenta ter todos os seus 18 anos de idade.

Ao descer a avenida, os seis passam por um carro da RPC. Dentro, há três rostos entediados; eles vieram para cobrir uma manifestação com sete mil pessoas. Luan e o grupo decidem ficar na esquina da Bispo Dom José com a Deputado Antonio Baby. Acreditam que ali as chances de serem encontrados são maiores. Além disso, as marquises são generosas e oferecem uma boa proteção contra a chuva.

As cadeiras de praia montadas na Bispo Dom José são a Farofada no Granito, uma manifestação que entende o calçamento do bairro nobre como uma metáfora de exclusão social. Na internet, o evento prometia “sambar na cara da elite”. O vereador José Carlos Chicareli deve ter feito uma interpretação literal da frase e pediu que a prefeitura responsabilizasse o movimento por eventuais danos ao partimônio público. A entidade que representa os bares do Batel também tratou o assunto pelas vias da segurança pública e recomendou que todos fechassem as portas para se proteger da balbúrdia que tomaria conta das ruas. O vereador e os empresários ficariam mais tranquilos no começo chuvoso da  tarde domingo, se vissem os seis manifestantes espremidos sob a marquise.

Entre os manifestantes está o Alexandre Alab, um professor de história que tem o saxofone como hobby. Alab saca um sax sabe-se lá de onde e ensaia um John Coltrane. Ele vai bem até ser interrompido por um jornalista da CNT que quer saber o que está tocando. Ao ouvir o nome de Coltrane, o repórter policial parece confuso e muda de assunto; ressalta que o importante é que ele tem bons microfones capazes de captar o som.  O repórter não conhece jazz. Alexandre certamente lamenta, mas não diz nada. Surge a voz  de Luan: “Gente vamos sair daí [do refúgio sob a marquise]. O repórter quer que a gente se acumule para fazer boas imagens”. O grupo não ouve; presta muito mais atenção nos guardas minicipais que se aproximam.

Seis motos da guarda municipal sobem a Bispo Dom José. A equipe se estabelece há cerca de vinte metros dos manifestantes. Um dos guardas conversa com alguém pelo rádio. Do aparelho surge a ordem: “A equipe fica no Batel até as 15h para monitorar o movimento”. Há um muxoxo geral entre os agentes da segurança pública. Não admitem, mas querem ir logo embora. “Essa farofa já virou sopa”, reclama alguém.

Na esquina, a manifestação cresce. Recebe a adesão de uma garota hipster debaixo de um guarda-chuva de criança, de uma adolescente acompanhada da mãe,  de um casal de hippies bem maduros e de outros tantos tipos. Percebendo que há mais público, Luan sobe em um dos bancos de madeira maciça instalados na mesma reforma que revestiu o chão com granito: ”Gente, eu não sou o organizador da manifestação. Sou um mero ‘motivador social’ e estou aqui para apresentar algumas músicas com teor de marchinha”. Luan pede a participação dos outros manifestantes; quer que todos cantem.:“Ei burguês aí, me dá um granito aí”.  Como há poucas vozes se somando, Luan faz novas tentativas. O refrão “Eu vou farofar, olê-olê-olá, e a elite vai se mudar” fez mais sucesso, mas também não vingou. A trilha sonora da farofada acabou mesmo vindo do saxofone de Alexandre.

A imprensa vai se acumulando ao redor dos manifestantes. A RPC saiu do carro, o G1 está presente e a CNT ainda não foi embora. A Rede Massa tenta proteger a câmera da chuva e o cinegrafista da Band, de mangas curtas, faz pouco caso dos pingos . Se, por um acaso cataclísmico, houvesse uma briga de gangues entre jornalistas e manifestantes, seria bem capaz dos primeiros saírem vencedores.  Eles não estão em considerável desvantagem numérica e poderiam usar os pesados tripés das câmeras como armas.

Tendo captado imagens e gravado depoimentos, a imprensa vai saindo de fininho. Enquanto isso, novos manifestantes vão chegando. Há jovens com dread-locks estilosos, um casal de ciclistas e uma feminista de bikini. Sempre que o público aumenta, Luan se arrisca em uma nova performance. Dessa vez ele sapateia ao som do saxofone de Alexandre e lamenta não ter trazido os calçados adequados.

Um homem de meia idade decide seguir o exemplo juvenil de Luan: ele sobe no banco e prepara uma nova apresentaçnao artística. Uma edição da antologia “Toda Poesia”, de Leminski, brotou do mesmo vácuo misterioso de onde saiu o sax; junto com um megafone, é o que basta para fazer um recital. Luan não deixará o companheiro sozinho; também quer ler poesia no megafone e, quando terminar, ainda vai insistir nas marchinhas.

A Guarda Municipal, que tinha sido orientada a ficar até as 15h, desiste de observar a manifestação às 13h33.  Não viram a farofa ser servida em pratos descartáveis e também não puderam intervir quando a manifestação finalmente chega o mais perto que jamais chegará de atrapalhar os comerciantes da região: o proprietário do número 2.193 pretendia entrar no seu estabelecimento, mas havia uma bicicleta encostada na porta.  Ele precisou esperar o dono da bike aparecer e perdeu cerca de trinta segundos do seu domingo. Não consta que o comerciante tenha reclamado ou feito grande caso do incidente.

A manifestação continua recebendo adesões: duas jovens que trazem banquinhos de plástico, uns dois ou três tiozões animados, um representante do Partido Pirata e Chik Jeitoso; um bruxo que faz aparições ocasionais em vários programas de TV, incluindo o horário eleitoral gratuito. Ao marcar presença na Farofada, Chik usa uma capa vermelha, tem um charuto na boca e carrega uma galinha de plástico em uma das mãos. Quando ele aperta a galinha de brinquedo, ela cacareja.  Mesmo com todo o aparato, Chik está longe de ser a figura mais excêntrica da manifestação. Luan, sapateando sobre o banco, girando um guarda-chuva multicolorido, estendendo os braços em gestos efusivos e discursando com frases de construções elaboradas ganha de longe.

Quando o rapaz se cansa da exposição, desce do banco e pega uma cerveja. Ele propõe um brinde a André Feiges, um dos organizadores do ato público. Um segura uma Heineken e o outro tem uma Skoll Latão. “Viva a Farofa”, grita Luan, sozinho. Me aproximo dos dois. “Nós não inventamos nada, apenas captamos uma ideia que já estava no imaginário coletivo”, me diz André. Decido contar os presentes para ter noção daquilo que se entende por “coletivo”; são 36 pessoas.  Na internet eram mais de sete mil. Eu pretendia fazer mais uma ou duas perguntas a André, mas, sem que eu perceba, ele se afasta e se ocupa de outra tarefa qualquer. Ao meu lado só resta Luan, parecendo muito mais disposto a dar entrevista. São 14h35 quando decido imitar a despedida da Guarda Municipal e do resto da imprensa loucal – saio à francesa.

Comentário de Kaley Michelle, recebido minutos depois da publicação do texto:

Que trabalho de jornalismo mais tendencioso hein? Não tem vergonha não? Ao longo da tarde passaram ao menos 300 pessoas por ali. Recolhemos assinaturas, discutimos política nos bairros, falamos sobre censura na mídia ( como essa sua), bloqueamos a rua, depois o cruzamento da praçinha, votamos no tema e local da próxima farofada! Tudo debaixo de chuva e frio! Mas não é válido porque nós não protestamos do jeito que você queria? Porque o fervo não foi no horário que você quis???? Foi uma grande vitória, a primeira de outras com certeza. Quero agradecer teu trabalho, que é por causa dessa ditadura silenciosa e mídia mentirosa que seu país está nesse estado! ASSINADO: FEMINISTA DE BIQUINI

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