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Documentário revê obra de Jorge Mautner

Marco Aurélio Canônico
Folha de S. Paulo

Há uma história que Jorge Mautner gosta de contar antes de cantar “Todo Errado”, um de seus sucessos: aos 12 anos, foi repreendido por uma professora de matemática por não prestar atenção na aula e teve de levar um bilhete dela para o pai assinar.

Em casa, ouviu dele: “Não ligue não, meu filho, porque, do jeito que você fizer, você estará sempre errado”.

A anedota ilustra bem este carioca de 72 anos, artista polivalente e “maldito”, pensador e guru de uma geração, que agora é homenageado em vida com o documentário “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto”, dirigido por Pedro Bial e Heitor D’Alincourt.

O longa estreia hoje em 30 salas no país, após percorrer o circuito de festivais e vencer os prêmios de roteiro, fotografia e montagem na última edição de Gramado.

“É um documentário que usa recursos da ficção. Diante da obra monumental do Jorge, o filme tinha de ser belo, nada de cabeças falantes em frente a estantes de livros”, diz Bial.

Os diretores usam não apenas entrevistas atuais com o protagonista e seus amigos, como Caetano e Gil, mas muitas imagens de arquivo, incluindo cenas da “chanchada filosófica” “O Demiúrgo” (1970), que Mautner rodou em Londres com os baianos, durante o exílio na ditadura.

As conversas são intercaladas com cantorias, nas quais aparecem sucessos como “Maracatu Atômico”, com Gil, “Vampiro” e “Todo Errado”, com Caetano.

Há espaço também para o resgate de pérolas menos conhecidas, como “Lágrimas Negras” e “O Relógio Quebrou”, que Mautner canta ao lado de seu maior parceiro, Nelson Jacobina (1953-2012).

Tão bem representada quanto sua porção cantor e compositor está seu lado de escritor, filósofo e agitador.

Filho de um casal de refugiados da Segunda Guerra, educado “na maior liberdade que você possa imaginar”, Mautner destacou-se desde cedo -aos 15 anos escreveu “Deus da Chuva e da Morte”, livro que foi lançado em 1962, vencendo o prêmio Jabuti.

Nos depoimentos em que aborda política e sociologia, transparece seu orgulho do Brasil e a fé inabalável na miscigenação, elementos nítidos em sua produção.

“Toda minha arte está submetida a uma militância incessante”, diz Mautner.

PAI E FILHA

Um dos momentos mais divertidos do longa é a conversa entre o protagonista e sua filha, a diretora de TV Amora Mautner (“Avenida Brasil”).

Ela lembra as idiossincrasias do pai, que andava nu em casa o tempo todo, e cita ainda o bullying que sofreu por conta de seu nome (inspirado não na fruta, mas no “feminino de amor”).

“Talvez ele estivesse adiante do seu tempo”, diz Bial. “Só no século 21 nasceram as crianças que o entenderão não como um maldito, mas como um libertário.”

Seu homenageado resume: “Para mim, esse negócio de maldito é elogio”.