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A última flechada de Janot

Às vésperas de deixar o cargo, o procurador-geral da República protagoniza um dos maiores vexames da história e gravação feita por Joesley Batista mostra como foi armada a delação premiada da JBS

Mário Simas Filho

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, passou os últimos dois meses ameaçando ferir com flechas o governo de Michel Temer e alvejar o próprio presidente. Às vésperas de entregar o cargo, porém, na segunda-feira 4 Janot disparou aquela que poderá ser sua última lança. O problema é que desta vez a flecha atingiu o arqueiro. Em entrevista coletiva, o ainda procurador-geral comunicou que as delações de Joesley Batista e de outros diretores da JBS, que paralisaram o País e serviram de base para sua denúncia contra o presidente Michel Temer, poderão ser anuladas, uma vez que foram resultado de uma armação entre delatores e membros de seu próprio gabinete. Assim, o procurador que esperava encerrar sua gestão como espécie de salvador da pátria, implacável guerreiro no combate contra a corrupção e responsável por denunciar mais de uma vez um presidente da República no exercício do mandato, encerra seu ciclo à frente do Ministério Público de forma melancólica e vexatória.

A prova da armação é uma gravação com diálogos entre o empresário Joesley Batista e Ricardo Saud, executivo da JBS. Em aproximadamente quatro horas de conversas debochadas, gravadas por eles mesmos, ambos anunciam que vão dissolver o Supremo Tribunal Federal, comemoram a impunidade que lhes fora outorgada a pedido da Procuradoria Geral da República, revelam como as delações foram dirigidas pelo ex-procurador e ex-braço direito de Janot, Marcelo Miller, e, finalmente, demonstram que Janot sabia de tudo o que estava ocorrendo (leia os diálogos gravados ao longo dessa reportagem). Para que não viesse a ser denunciado por sua sucessora nas próximas semanas, o procurador-geral foi obrigado a tornar pública a própria farsa.

A troca do Ministério Público Federal (MPF) pelo escritório de advocacia Trench, Rossi & Watanabe proporcionou um salto astronômico no orçamento do ex-procurador da República Marcelo Miller, que durante três anos foi um dos principais assessores do procurador-geral Rodrigo Janot. A transferência de Miller foi parecida com a de um jogador de futebol. A banca de advogados ofereceu a ele R$ 4,2 milhões em 36 parcelas de aproximadamente R$ 110 mil — na PGR ganhava R$ 28,9 mil por mês.

Com a divulgação dos novos áudios de uma conversa entre o dono da JBS, Joesley Batista, e o diretor do grupo Ricardo Saud explica-se por que o braço direito de Rodrigo Janot foi contratado a peso de ouro. Miller foi escalado para influenciar Janot a fechar delação premiada dos executivos da empresa. É o que afirmam os dois executivos da JBS nas gravações feitas no dia 7 de março, quando Miller ainda era assessor de Janot.

Antes de se desligar do MPF, em 5 de abril, Miller integrava o grupo de trabalho recrutado por Janot para auxiliar nos trabalhos da Lava Jato. Entre suas atribuições importantes, ajudou a fechar os acordos de delação premiada do ex-diretor da Transpetro Sérgio Machado e do ex-senador Delcídio do Amaral — ambas questionadas e que podem ser anuladas. Seus antigos pares no MPF já desconfiavam da sua dupla jornada. Em um dos encontros com os membros do MPF que integravam a Força-Tarefa e que antecederam o fechamento do acordo de delação dos executivos da JBS, ele foi impedido de participar.

O acordo bem-sucedido da JBS com o Ministério Público Federal teria rendido R$ 27 milhões ao escritório em que Marcelo Miller foi trabalhar depois que largou a PGR. A Trench, Rossi e Watanabe nega que seja esse o valor do contrato.

Em nota, Miller disse que não “cometeu qualquer crime ou ato de improbidade administrativa”.

A DERRADEIRA ARMAÇÃO

Janot procurou se colocar diante dos brasileiros como uma espécie de vítima, alguém que fora traído por um auxiliar que gozava de sua absoluta confiança. Não é o caso. Janot, na verdade, foi mentor de toda a farsa. De dezembro de 2014 até a penúltima semana, ISTOÉ publicou uma série de reportagens (leia quadro na pág. 33) que demonstra como o procurador-geral vinha operando no comando do Ministério Público de forma nem um pouco republicana, em geral agindo em benefício do PT. O ainda procurador-geral sabia que poderia ser desmascarado e agora ISTOÉ revela como nas duas últimas semanas Janot tentou uma derradeira armação.

“Agride-se, de maneira inédita na história do País, a dignidade institucional deste Supremo Tribunal Federal e a honorabilidade de seus integrantes” Cármen Lúcia, presidente do STF

Desde que o Senado aprovou a indicação da procuradora Raquel Dodge para comandar o MP, as atividades do ainda procurador-geral — que têm desagradado a Polícia Federal e parte da força tarefa da Lava Jato — vêm sendo observadas com lupa pela equipe da futura procuradora- geral. Há cerca de 20 dias, auxiliares diretos de Janot e advogados do grupo JBS fizeram um espúrio acordo para tentar excluir a equipe da procuradora Raquel Dodge da análise dos documentos que seriam entregues por Joesley. “Janot preparou uma armadilha e acabou sendo vítima dela”, disse uma procuradora próxima de Dodge na manhã da terça-feira 5. Foi uma armadilha infantil. O prazo para a entrega dos documentos da JBS se encerraria na quinta-feira 31 de agosto. Mas, como marotamente combinado, os advogados da JBS pediram novo prazo e Janot concedeu mais algumas semanas. Uma encenação para que a equipe de Dodge relaxasse a “vigilância”. Os documentos, no entanto, foram entregues na noite da própria quinta, quando Brasília já estava vazia, e os aliados de Janot passaram o fim de semana analisando tudo, sem que os assessores de Dodge estivessem por perto. A ideia era surpreender apresentando as “provas” já editadas, criando uma saia justa para o presidente Michel Temer em sua volta da China e pautando o noticiário durante do feriado. A estratégia previa ainda que logo depois do feriado fosse encaminhada ao Congresso e ao STF uma nova denúncia contra o presidente. Os trapalhões — como tem sido chamado o grupo de Janot na PGR desde a semana passada — só não contavam que as gravações contendo as inconfidências de Joesley estivessem ali. “No domingo de manhã pensaram em dispensar as gravações, mas a Polícia Federal já tinha o mesmo conteúdo”, lembrou um dos procuradores ligados a Dodge. De fato, segundo um dos advogados que atua para o grupo JBS, a gravação foi entregue porque a PF já tinha uma cópia dela.

REVIRAVOLTA

Ainda na China, o presidente Michel Temer e sua comitiva comemoraram a flechada que Janot disparou contra o próprio peito. O advogado de Temer, Antônio Claudio Mariz de Oliveira, foi ligeiro. Na quarta-feira 6 entrou com um pedido no STF solicitando que o ministro Edson Facchin, relator da Lava Jato, determine a suspensão de nova denúncia ou de outros inquéritos que Janot venha a pedir contra o presidente até que o caso da delação armada seja esclarecido. “No presente caso, ou nos demais que eventualmente possam surgir, a atuação parcial, conflitante e passional de autoridades e o descrédito de colaboradores comprometerão a higidez de qualquer processo, em verdadeira afronta ao Estado Democrático de Direito”, escreveu Mariz. O criminalista voltou a pedir a suspeição de Janot para atuar em processos contra o presidente.

No Congresso, a base aliada do Planalto avalia que o procurador-geral sai extremamente enfraquecido depois da trapalhada de segunda-feira. A animação é tamanha que muitos parlamentares e até ministros palacianos entendem que será possível retomar o projeto de reforma da Previdência ainda em 2017. “O Janot vacilou. Perdeu o passo. Entrou na curva a 120 KM por hora, quando deveria estar a 80. Agora não há a menor possibilidade de ser aceita uma denúncia contra o presidente”, afirmou o líder da maioria na Câmara, deputado Lelo Coimbra (PMDB-ES). A hipótese de a delação de Joesley vir a ser cancelada também foi muito bem vinda entre os tucanos. “Isso tudo facilita a manutenção de nossa aliança e de nossa participação no governo”, afirmou à ISTOÉ na manhã da quinta-feira 7 um ministro do PSDB. Até mesmo na oposição, há a convicção de que os ventos passam a soprar a favor do governo. “Não sabemos dizer qual será o tamanho dos votos a favor do governo, mas certamente o Planalto está muito mais forte depois dessa trapalhada do Janot”, disse um senador petista. Fortalecida, a base aliada planeja retomar a CPMI da JBS. O senador Ataídes Oliveira (PSDB-TO) deverá ainda essa semana apresentar uma série de requerimentos para que sejam feitos depoimentos rapidamente. O primeiro a ser convocado deverá ser o procurador-geral, Rodrigo Janot.

A última flechada do ainda procurador-geral da República também mobilizou o Judiciário, particularmente o STF, corte que o falastrão Joesley Batista afirmou que iria dissolver. Segundo a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Carmén Lúcia, a revelação feita pelo empresário “agride de maneira inédita a história do País”. Na noite da terça-feira 5, a ministra determinou que o caso fosse investigado com transparência e rapidez, para que não pairem dúvidas à sociedade sobre a idoneidade da suprema corte. Na mesma noite, o empresário Joesley Batista disse que a gravação, no que se refere aos ministros do STF não passava de bravata. Os ministros do STF Gilmar Mendes e Luiz Fux também foram enfáticos. “Isso tudo nos mostra que estão usando a delação premiada para outra finalidade, para perseguição política”, afirmou Mendes. Segundo o ministro, Janot “é o mais incompetente procurador-geral a ocupar o cargo”. Na tribuna do STF na tarde da quarta-feira 6, o ministro Fux foi incisivo: “Defendo que eles (Joesley e Saud) troquem o exílio de Nova York por um exílio na Papuda”, afirmou.

Qualquer que venha a ser o resultado da investigação pedida pela ministra Cármen Lúcia, juristas ouvidos por ISTOÉ na última semana são praticamente unânimes ao afirmar que a delação da JBS deve ser cancelada o mais rápido possível. Com isso, os empresários que na conversa gravada zombam dos brasileiros ao afirmar que “nunca seriam presos”, que deram o que Janot queria e assim salvaram a empresa, perderão os privilégios obtidos. Até o fechamento desta edição na quinta-feira 7, Joesley estava depondo na PGR. Havia a expectativa de que ele pudesse ser preso ainda essa semana. A provável prisão dos delatores fanfarrões certamente será aplaudida pela sociedade, que desde maio repudia os benefícios dados a quem se locupletou com dinheiro público. Isso, no entanto, não será capaz de repor os enormes prejuízos que o País teve devido à armação de Janot. Na quarta-feira, o presidente Temer comentou com um ministro palaciano: “Essa traquinagem do Janot atrasou o País em quase um ano”. A amigos próximos, o presidente tem tratado o caso com alguma ironia. “Ele (Janot) dizia que eu deveria conhecer o que fazia meu assessor, o Loures. E elenão precisava controlar o Marcelo Miller?”

A armação feita em torno a delação da JBS deverá desencadear um efeito cascata em anulação de delações, fazendo delatores perderem benefícios e provas serem anuladas. Já estão sob questionamento as delações de Sérgio Machado e Nestor Cerveró, ambas conduzidas de maneira similar à de Joesley.