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Juventude e fascismo

 / Cristóvão Tezza, na Gazeta do Povo

A velha repressão puritana – cultural e moral – que os pais exerceram sobre os filhos desde que o mundo é mundo para que as coisas continuassem razoavelmente nos eixos encontrou seu maior adversário – e talvez irreversível – na revolução dos anos 1960. Aconteceu muita coisa ao mesmo tempo, entre elas a pílula, o novo papel da mulher e a implosão da família nuclear tradicional.

E a modernização econômica da sociedade ocidental (com seu concomitante enriquecimento), mais a metafísica da liberdade que dominou corações e mentes, criaram de fato um outro mundo. Ponha-se no caldeirão uma boa pitada de internet, que desenraizou ao limite as relações estabilizantes do antigo dia a dia, mais uma sociedade injusta, e, entre nós, de substância iletrada, e chegamos ao instante presente.

Difícil dar conta do mundo – indo à padaria comprar pão, prefiro pensar só nas redondezas, e, entre um mendigo dormindo na calçada e uma guardinha multando um carro, vejo a pichação na parede imensa: “Se eleição fosse bom seria proibida”. O spray desenha as letras com volúpia no espaço vazio. “Abaixo os políticos”, diz outra palavra de ordem. Na fila do pão francês, vejo a tevê mostrando jovens com mantos cobrindo o rosto, semelhante a burcas, quebrando o que encontram pela frente. Em outra tomada, duas crianças de rosto coberto são usadas portando cartazes que com certeza não entendem. Uma jovem grita para as câmaras, apontando os soldados da PM: “Eles que começaram”.

É cinismo – o que me intriga é o grau de sinceridade do cinismo, se me perdoam o paradoxo. O movimento chamado de black bloc é classicamente um movimento fascista, mas é possível que boa parte de seus militantes nem saiba disso, no embalo da balada.

O horror ao que se chama de “política tradicional” (como se houvesse outra), mais a percepção difusa de um “sistema injusto” (o que nos transforma em paladinos intocáveis da justiça), somando-se a carências emocionais, com atalhos violentos de impaciência, e algum quadro teórico e um bom guru para dar uma sombra intelectual ao movimento (Slavoj Zizek está na moda) – e temos uma milícia em ação.

Quando as milícias encontram uma sociedade fragilizada (corrupção, inflação, miséria) e triunfam, destruindo sua capacidade de sobrevivência, o primeiro efeito da “nova ordem” é colocar a lei na ilegalidade, e surge um justiceiro que assumirá o poder para nos redimir – Lenin, Stalin, Hitler –, heróis que, sobre uma montanha de cadáveres, dedicam-se a destruir a nação em defesa de sua “purificação”.

O jovem fascismo brasileiro que sai encapuzado às ruas certamente não chegará a isso, mas já surtiu um efeito notável, que foi silenciar a inteligência dos protestos políticos, substituindo-os pelos novos donos da rua, todos rosnando de molotov na mão, na esperança de que um dia sejam eles a expressão do Estado.