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Tortura e estupro na cultura política

Não faça do seu candidato a presidente uma arma, a próxima vítima pode ser você

Eugênio Bucci

No dia 17 de abril de 2016, quando a Câmara dos Deputados disse “sim” à admissibilidade do processo de impeachment contra Dilma Rousseff, o deputado federal Jair Bolsonaro brandiu uma declaração de voto desaforada. Eis o texto: “Pelo povo brasileiro. Pelo nome que entrará para a história desta data, pela forma como conduziu os trabalhos desta casa, parabéns, presidente Eduardo Cunha. Perderam em meia quatro, perderam agora em 2016. Pela família, e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”.

O nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório torturador e chefe de torturadores, está escrito com sangue alheio na História do Brasil. Ao exaltá-lo, Bolsonaro fez apologia do crime de tortura. Depois, diante dos protestos lúcidos que colheu por seu pronunciamento, o deputado tentou se explicar. Alegou que o coronel, morto em 2015, aos 83 anos, embora apontado em processos judiciais como autor do crime de tortura, não foi condenado no Supremo Tribunal Federal como torturador. “Condenação em primeira instância não vale, ele nunca pagou uma pena”, declarou à Rádio Gaúcha(18/4/2016). Em outra entrevista, observou que Ustra “recebeu a mais alta honraria do Exército Brasileiro pelo seu trabalho” (O Dia, 24/4/2016). Tentou, enfim, convencer seus compatriotas de que não fez a louvação de um criminoso, mas de um militar de carreira honrada, um “herói”.

Tudo conversa fiada. Ele elogiou, sim, a tortura como solução política. Basta ver o aposto que ele usou para qualificar seu “herói”: “o pavor de Dilma Rousseff”. Pensemos um pouco. Por que outro motivo o militar homenageado teria sido “o pavor de Dilma Rousseff”? Ou por que Dilma, que foi torturada durante a ditadura, teria pavor de Ustra? A resposta é uma só (não há outra possível): Dilma teria razões para temer o coronel porque ele torturava prisioneiros e prisioneiras. Não há outra explicação. Logo, o que Bolsonaro quis enaltecer foi a tortura e o torturador. É isso o que ele quis dizer e é isso o que ele pensa. Bolsonaro, que agora anda querendo se passar por democrata tolerante, apoia a tortura praticada durante a ditadura e acredita que os torturadores são “heróis”. Ele aplaude especialmente a tortura de mulheres, na qual os agentes da repressão ritualizaram sua mais abjeta covardia. A leitura de seu voto em 17 de abril de 2016 não deixa dúvidas.

Agora o estupro. Bolsonaro ofendeu gravemente a ex-ministra e parlamentar do PT Maria do Rosário. Ele a xingou de “vagabunda” aos gritos. Uma dessas agressões verbais foi registrada em vídeo pela Rede TV e pode ser vista no YouTube. Pior ainda, sob o pretexto de que teria sido qualificado como “estuprador” pela deputada, deu várias declarações para dizer que sua adversária não preenchia os requisitos para sequer ser estuprada: “Fica aí, Maria do Rosário, fica. Há poucos dias tu me chamou de estuprador (…) e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece. Fica aqui pra ouvir”. Isso na Câmara dos Deputados.

Em outra ocasião, numa entrevista ao jornal Zero Hora (em 2014), foi mais torpe: “Ela não merece (ser estuprada) porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria”.

De novo, a fala repulsiva do hoje candidato à Presidência da República tem uma única serventia: deixa claríssimo o que ele pensa. Fica escancarado que, em algum lugar sombrio de seu aparelho psíquico, o destemperado político acredita que a mulher “bonita” é mais suscetível ao estupro – ou “merece” ser estuprada. Na cabeça dele, o estupro é uma expressão estética (isso sem falar no absurdo completo de seu juízo de “beleza” e de “feiura”). Para ele, o estupro, como a promoção dos militares às patentes mais altas, é questão de merecimento.

Todos aqui já sabemos muito bem que, como alguém capacitado a gerir a máquina pública, a liderar seus pares, a costurar alianças dialogadas sem as quais não se opera a política moderna, Jair Bolsonaro é apenas uma nulidade. Falta a alguns de nós reconhecer que, como sintoma de uma mentalidade abrutalhada que se vem adensando no Brasil, é assustador e inaceitável. Esse arauto da tortura e do estupro desponta como o mais novo popstar de uma cultura política que despreza os fundamentos da democracia. O que vamos fazer com isso?

Bolsonaro não sabe bem o que diz – assim como não sabe que o que diz revela o que teria preferido esconder –, mas pronuncia o horror com todas as letras. A toda hora procura minimizar o caráter ditatorial e arbitrário do regime militar. Por essa via, anula por inteiro os fundamentos da nossa precária democracia. É simples. A democracia brasileira abriu-nos uma infinidade de dissensos, que são saudáveis, mas resultou de um único e essencial consenso: o consenso de que o golpe de 1964 instrumentalizou o Estado para a prática de violações dos direitos humanos e se impôs como ditadura. Se deixarmos de chamar de ditadura a ditadura, o pacto que nos permitiu iniciar a caminhada da democracia terá ido pelo ralo. Vamos agora abaixar a cabeça para essa história de que a ditadura teve justificativas democráticas?

Bolsonaro representa uma cultura política para a qual a democracia não é um valor, mas um mero detalhe administrativo dispensável. Nessa cultura, a tortura tem serventia e o estupro é culpa da “beleza” da mulher. Essa cultura política não vai acabar com a corrupção. Essa cultura é velha e nunca, em lugar nenhum, acabou com a corrupção. Cuidado. Não faça do seu candidato a presidente uma arma, a próxima vítima pode ser você.

Eugênio Bucci, jornalista e professor da ECA-SP

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