Arquivos

Categorias

Conselheira tutelar eleita em Foz defende “pedagogia da tortura”

Impor ao aluno que fique de frente para a parede durante a aula. Colocá-lo de joelhos sobre grãos de milho, aplicar puxões de orelha, “reguadas” nas palmas das mãos.

Castigos físicos e tratamentos degradantes, proibidos por lei nas escolas brasileiras, foram elencados como práticas eficazes de educação por uma professora de ensino fundamental de Foz do Iguaçu, eleita no último domingo para atuar como conselheira tutelar no município entre 2024 a 2028.

Servidora pública municipal desde 2015, a pedagoga Leila Bencke compartilhou em meados de julho passado uma série de áudios com posicionamentos que atentam contra o Estatuto da Criança e do Aldolescente (ECA). À época do envio das mensagens via WhatsApp, a professora estava afastada da sala de aula por motivos de saúde. Em paralelo, tocava sua campanha para conquistar uma das dez vagas disponíveis no Conselho Tutelar da cidade, com remuneração mensal de R$ 5.202,45.

“Você se lembra muito antigamente? Quando os alunos eram indisciplinados, eles eram mal educados, desrespeitosos, tinham muita resistência em cumprir as regras estabelecidas. O que o professor tinha o direito de fazer naquela época? Colocar no milho, deixar o aluno de frente pra parede. Eram castigos, que se falar uma coisa dessas hoje é tortura. Eu conheço vários pais de alunos meus que passaram por esse período, e eles disseram que isso foi a correção da vida deles (…)”, disse Leila Bencke em um dos áudios obtidos pela reportagem.

Em outra mensagem de voz, Leila sugere que estudantes paraguaios seriam mais bem educados que brasileiros por terem sido submetidos a castigos físicos no país de origem.

“(…) Mas, assim, de dez estrangeiros por sala de aula, oito são venezuelanos. No entanto, os alunos paraguaios nos relatam que lá no Paraguai ainda existe esse tipo de disciplina. Essa que falei do milho, da reguada na mão, da puxada de orelha, de deixar o aluno de frente pra parede a aula toda. Ainda se usa esse método no Paraguai. Se vocês soubessem como os alunos que vêm do Paraguai são educados. Vocês não têm noção”, exultou a professora eleita para resguardar os direitos da criança e do adolescente em Foz do Iguaçu.

Procurada, Leila Bencke afirmou que os áudios teriam sido editados e retirados de contexto. “A conversa envolvia formas que os alunos eram disciplinados antigamente, onde eu e demais colegas estávamos dialogando sobre isso”, justificou ao afirmar que em nenhum momento apoiou tais práticas. Questionada sobre seu conhecimento acerca das atribuições do Conselho Tutelar, a pedagoga ironizou com um emoji de gargalhada e não respondeu mais.

Desinformação

Para a professora do curso de Letras da Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA), Laura Amato, o posicionamento compartilhado por Leila Bencke é “chocante” e carente de conexão com a realidade.

“Estou chocada com o absurdo e as inverdades que essa mulher falou. Sobre esses métodos violentos, isso não foi registrado em nenhuma escola da rede pública ou privada no Paraguai, nem em cidades do campo. Se há violência, ela não foi registrada. Era algo comum antigamente, tal qual no Brasil”, explicou Laura, doutora pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora de educação intercultural na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina.

Pedagogia da tortura

Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e docente sênior do programa de pós-graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste-PR), Silvana Aparecida de Souza aponta o posicionamento compartilhado pela professora de ensino fundamental como possível prática de apologia à tortura.

“Quando se fala com certo saudosismo de uma escola que tinha o direito de bater nas crianças, colocar no milho, fazer uso da palmatória, que é um instrumento de tortura, é preciso entender que essa mesma escola funcionava em paralelo ao período da ditadura militar, em que pessoas eram torturadas até a morte. Não existe no mundo um pedagogo respeitado que defenda essa pedagogia ditatorial, que é a pedagogia da tortura. O conteúdo desses áudios evidenciam possível apologia à tortura, e o pior, contra menores. É um absurdo”, afirmou.

Lei

Sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff em 27 de junho de 2014, a Lei Menino Bernardo (antes conhecida como Lei da Palmada), modificou o ECA para estabelecer o direito de crianças e adolescentes serem educados sem o uso de castigos físicos ou tratamento cruel.

Segundo a norma em vigor, pais ou responsáveis que usarem castigo físico ou tratamento cruel e degradante contra criança ou adolescente ficam sujeitos a advertência, encaminhamento para programa oficial ou comunitário de proteção à família, tratamento psicológico e cursos de orientação, além de outras sanções. A lei estabelece que essas medidas sejam aplicadas pelo conselho tutelar da região onde reside a criança.

Investigação

Embora compartilhados há cerca de dois meses em um grupo de WhatsApp com aproximadamente 300 pessoas, entre lideranças políticas, comunitárias e empresariais da cidade, a reportagem apurou que os posicionamentos contrários ao ECA, expostos por Leila Bencke, não foram encaminhados aos órgãos competentes para apurar o caso, entre eles o Ministério Público do Paraná (MP-PR) e o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA).

Ao tomar conhecimento do conteúdo dos referidos áudios, o promotor Fernando de Paula Xavier Junior, titular da 15ª Promotoria de Justiça da Criança e do Adolescente, instaurou um procedimento administrativo para investigar a situação. “Até então não havíamos recebido estes áudios. Não tínhamos nenhuma informação acerca dos posicionamentos dessa candidata. Irei chamá-la para prestar esclarecimentos. Se uma candidata realmente tem esses pensamentos, essas atitudes. Não sei se já chegou a colocar em prática isso, ou idealiza. Somos absolutamente contrários ao pensamento exposto nos áudios”, garantiu o promotor.

Sob a presidência da psicóloga Andressa Trevisan, também servidora pública da Prefeitura de Foz do Iguaçu, o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA), afirmou que, por não ter recebido o conteúdo dos áudios por vias oficiais, não poderia comentar ou realizar qualquer tipo de pronunciamento a respeito.

O vice-presidente do Conselho Tutelar de Foz do Iguaçu, professor Joel, também alegou desconhecer o conteúdo dos áudios, porém, defendeu a investigação sobre possível incitação ao uso de violência contra crianças por parte da professora Leila.

Já o Sindicato dos Professores da Educação da Rede Pública Municipal de Foz do Iguaçu (Sinprefi), por meio de sua assessoria, declarou “que não compactua com qualquer tipo de violência ou castigos físicos envolvendo crianças em sala de aula ou em qualquer outro local”.

A Secretaria Municipal de Educação informou que a conduta da professora será apurada por meio de procedimento administrativo. “Diante do conteúdo recebido será documentado e enviado para providências. As situações colocadas nos áudios são inadmissíveis para um profissional responsável pela formação pedagógica dos alunos”.

O prazo para impugnação das candidaturas eleitas para o Conselho Tutelar de Foz do Iguaçu termina na próxima sexta-feira (6).

Fonte: Plural Curitiba