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A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

"BEM-VINDA à nossa comunidade!". Essa saudação me foi dirigida logo na porta de entrada da Paróquia Nossa Senhora da Candelária por uma senhora que trajava uma camiseta que a identificava como integrante do grupo deapoio da igreja.

Às 19h, o local já estava lotado de pessoas vestidas com simplicidade, muitas com camiseta com a foto de Isabella. Mal consegui dar dois passos para entrar e assistir à missa de sétimo dia dedicada a Isabella e outras cinco pessoas. O ar estava abafado apesar de, lá fora, estar frio. Fiquei na porta.

Perguntei à senhora que me recebera se ela conhecia a maioria das pessoas que lá chegara. Ela respondeu que não, que cerca de metade delas freqüenta a igreja, mas que, com o anúncio da missa pela TV, muitos vizinhos haviam ido para lá para, quem sabe, "ter a chance de aparecer nos canais de TV que estão aí" -jornalistas de rádio, emissoras de TV e da imprensa estavam lá em peso.

O padre começa a missa pontualmente, não sem antes exigir que todos da mídia se concentrassem no local reservado. Pelo lado de fora da igreja, cheguei à frente. De lá, vi o altar repleto com crianças que brincavam, correriam, conversavam. Pais as fotografavam.

Passei a sentir um mal-estar. Olhava para o público e não identificava expressões visíveis de dor, sofrimento, indignação, espanto. Foi mais resignação o que vi estampado nos rostos presentes. Alguns choram silenciosamente. Os demais cantam, batem palmas, oram.

A comunhão ocorre enquanto uma jornalista escova os cabelos e ensaia a entrada que fará ao vivo. Cerca de oito metros atrás dela está a mãe de Isabella, logo na primeira fila. Terminada a comunhão, a repórter celebra com a "câmara-woman" o êxito de sua participação no noticiário da emissora.

Assim que o padre termina a missa, todos os jornalistas com suas câmaras, microfones, telefones celulares ligados e luzes fortes correm e rodeiam a mãe de Isabella. De longe, me coloco no lugar dela, aprisionada pela sociedade do espetáculo a qualquer custo, e me entristeço.

Saio carregando meu mal-estar, minha tristeza e a idéia de que o sofrimento de nossa gente é tamanho que talvez nem seja possível sofrer mais quando ocorre uma tragédia. Tempos desumanos e de barbárie este que vivemos, não?

Rosely Saião/Folha de S. Paulo.