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A retórica e o impeachment

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Como é possível que ainda haja pessoas de boa índole, íntegras, que se deixem levar pela retórica de Dilma?

Editorial, Gazeta do Povo

Caso não haja mais nenhuma manobra protelatória, espera-se para esta terça-feira o ato final do processo de impeachment de Dilma Rousseff, com a votação, pelos senadores, da cassação definitiva da presidente afastada. Na segunda-feira, foi a vez de a própria Dilma ir ao Senado para apresentar sua defesa e responder às questões formuladas pelos parlamentares – muitas das quais, é preciso admitir, pouco ou nada tinham a ver com as acusações que embasam o pedido de impeachment, isso quando senadores dilmistas nem mesmo faziam perguntas, limitando-se a gastar tempo rasgando elogios à acusada, como fez a ex-ministra Kátia Abreu (PMDB-TO).

Antes do interrogatório, Dilma fez um discurso de cerca de 45 minutos em que passou mais tempo defendendo sua biografia e acusando o “golpe” das “elites conservadoras” que propriamente tratando do mérito do processo. Uma fala dirigida menos aos senadores que deverão julgá-la e mais aos documentaristas simpáticos ao petismo que têm registrado o desenrolar do impeachment. Podemos relevar as meias verdades ou as mentiras deslavadas do discurso – Dilma jamais admitiria o estelionato eleitoral cometido em 2014, bem como nunca diria que lutou contra a ditadura militar porque desejava o estabelecimento de outra ditadura, de esquerda – e concentrarmo-nos nos aspectos específicos do processo em curso para questionar: como é possível que ainda haja pessoas de boa índole, íntegras, que se deixem levar pela retórica de Dilma?

Como acreditar, por exemplo, no discurso do “golpe” quando – como afirmou a senadora gaúcha Ana Amélia– a própria presidente afastada legitima o processo com sua presença diante dos parlamentares? Em suas falas no Senado, Dilma deixou subentendido que decidiu participar da sessão de segunda-feira porque, no fim, é a decisão dos senadores que definirá a avaliação do episódio: se ela for cassada, será golpe; se for inocentada, será a democracia em ação. Ora, se o trâmite do impeachment está segundo rigorosamente as regras estipuladas pelo Supremo Tribunal Federal e pela Constituição, se há pleno direito de defesa, é insensatez falar de “golpe” independentemente do resultado final da votação. Dilma faz aquilo de que acusa seus adversários políticos – que, segundo ela, recusaram-se a aceitar o resultado do pleito presidencial de 2014 porque a vencedora foi a petista. Que Dilma use desse artifício retórico para se defender é até compreensível, como um recurso desesperado para buscar algum apoio; que esse discurso acabe assimilado e repetido por tantas pessoas que vêm acompanhando com atenção o desenrolar do processo de impeachment é surpreendente.

Assim como também deveria ser motivo de perplexidade a penetração do discurso segundo o qual a manipulação ampla, geral e irrestrita do orçamento federal realizada com as “pedaladas fiscais” e os decretos que são o fator motivador do processo de impeachment não constituem crime de responsabilidade, ou seriam até mesmo justificáveis, como disse o ex-presidente Lula em outubro de 2015, quando afirmou que Dilma “fez as pedaladas para pagar o Bolsa Família. Ela fez as pedaladas para pagar o Minha Casa, Minha Vida”. Trata-se não apenas de desconhecimento da legislação referente ao assunto, mas de uma mentalidade que ignora o enorme dano que o país inteiro sofre quando as autoridades tratam as contas públicas com desleixo, manipulando números e escondendo da população a situação real dos cofres do Estado.

Ao insinuar – quando não afirma com todas as letras – que os senadores e o presidente do STF, Ricardo Lewandowski (que preside a sessão de julgamento de Dilma), são cúmplices de um golpe, Dilma sabe que não conquistará o seu apoio ou simpatia. Ela joga com o futuro. O impeachment, se vier, será a autêntica afirmação da democracia, mas a aposta do petismo é de que, com o tempo, a verdade será soterrada por uma narrativa segundo a qual Dilma foi cassada injustamente. Interessados em contar essa história não faltam; só nos resta esperar que sejam poucos os dispostos a acreditar nela.