Arquivos

Categorias

Darcy e suas paixões

darcy-ribeiro

Ao ser consagrado pela Sorbonne como doutor honoris causa, disse que aceitava o título por suas ‘derrotas’: a causa dos índios, a escolarização das crianças…

Zuenir Ventura

Todo o esforço teórico do antropólogo Darcy Ribeiro, que morreu há 20 anos, foi no sentido de encontrar resposta para uma pergunta ainda atual: por que o Brasil não deu certo? Ele não se conformava que um país tão rico, com mais recursos do que os EUA, quase da mesma idade, não tivesse destino igual. Insatisfeito com as respostas eurocêntricas, passou a buscar as suas, misturando vida e obra, teoria e prática, objeto e sujeito. Pesquisou nossas raízes históricas e mergulhou literalmente nas aldeias indígenas durante dez anos, que ele considerava os “mais belos” que viveu. Não ter salvo os índios, lamentava, “é a dor que mais me dói”.

Educador, queria ensinar o povo, tão rejeitado e tão carente de amor próprio e autoestima, a abandonar a humildade e assumir o narcisismo, ou melhor, o “darcisismo” — a ser autoconfiante e egocêntrico como ele mesmo, que gostava de se confundir com o Brasil e ser sua encarnação e metáfora, sua paixão e repto. O autor de “O povo brasileiro” não tinha apenas ideias, ele era uma ideia — uma atrevida e generosa ideia de país. Ao ser consagrado pela Sorbonne como doutor honoris causa, disse que aceitava o título por suas “derrotas”: a causa dos índios, a escolarização das crianças, o socialismo em liberdade e a universidade necessária. “Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas”.

Em 1974, os militares permitiram sua volta do exílio por achar que ele não resistiria à extirpação de um pulmão canceroso. Na véspera da cirurgia, fui visitá-lo e ouvi em divertido tom de segredo: “Eles estão achando que vou morrer, ha,ha,ha. Não sabem que esse câncer é como meus defeitos, se é que tenho algum, é só raspar”. De fato, viveu mais uns 20 anos, sem se apegar à mística do martírio, recusando-se a ser trágico e preferindo o humor. Orgulhava-se de suas ideias, mas admitia que a melhor não foi sua, mas de seus pais ao concebê-lo. Para Darcy, nada mais fascinante do que ele próprio, além, claro, das mulheres e do Brasil.

Contradições havia muitas, e ele era o primeiro a saboreá-las. A irreverência em relação ao rigor acadêmico fez com que ele estivesse mais para a poética e a ética do que para a ciência. O seu ideário se confundia com seu imaginário. É mais obra de arte do que tratado. Seu pensamento não forma uma doutrina, um dogma. Trata-se de uma inteligência rebelde, autônoma, que nunca se sujeitou a qualquer estreiteza sectária. Ele dizia que há duas opções na vida: resignar-se ou indignar-se. “Eu não vou me resignar nunca”. Criador da Universidade de Brasília e inventor dos Cieps e do Sambódromo, Darcy continua indispensável como consciência crítica nesses tempos de corrupção, cambalacho e cinismo.

Foto:arquivo/google