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A lambança do auxílio-moradia

Poucos episódios são capazes de enxovalhar o Judiciário em geral, e o Supremo em particular, como este

Editorial, Estadão

Num desfecho para lá de previsível, a Câmara de Conciliação da Advocacia-Geral da União (AGU) devolveu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o processo sobre o pagamento de auxílio-moradia a juízes e procuradores. Depois de três meses, as negociações, envolvendo associações de magistrados, nove Estados e a União, deram em nada, e por uma razão simples: a concessão do auxílio-moradia como se, na prática, fosse parte do salário dos magistrados não tem amparo legal – o que já se sabe desde 2014, quando o benefício foi estendido a todos os juízes do País por meio de liminar do ministro do STF Luiz Fux.

Poucos episódios são capazes de enxovalhar o Judiciário em geral, e o Supremo em particular, como este – e note-se que não é por falta de empenho de alguns juízes e promotores em criar situações cada vez mais constrangedoras nestes tempos de salvadores da Pátria togados. Vale, portanto, a recapitulação do imbróglio.

A generosa liminar do ministro Luiz Fux, concedida a pedido de associações de magistrados, permite que há quatro anos pingue na conta dos afortunados juízes e procuradores de todo o País um benefício que, por lei, só poderia ser destinado a juízes que não têm residência própria na cidade em que trabalham. Ou seja, na prática, como esse benefício não entra no cálculo do salário e, portanto, não é levado em conta para efeito do teto salarial do funcionalismo, os magistrados tiveram um aumento substancial de seus vencimentos – mais de R$ 4 mil mensais –, passando a receber acima do limite constitucional.

O ministro Fux concedeu a liminar no momento em que o Supremo se preparava para rejeitar a legalidade da extensão generalizada do auxílio-moradia. Durante três anos, manteve-se silente sobre o assunto, enquanto seus colegas usufruíam regiamente do benefício, à custa dos surrados cofres públicos e sem o correspondente pagamento de impostos.

Somente no final de 2017 o ministro Fux liberou o processo para julgamento. Mas, em março passado, mais uma vez na undécima hora, quando tudo se encaminhava para o desfecho previsto pela Constituição – isto é, a rejeição da concessão do benefício para quem a ele não faz jus –, o ministro Fux voltou a campo e, como relator das ações que discutem a constitucionalidade da versão dadivosa do auxílio-moradia, decidiu encaminhar os processos para a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, da AGU. E o fez, é claro, a pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros, como se a Câmara de Conciliação, cuja função é solucionar impasses entre a União e órgãos da administração federal indireta, fosse lugar de mediação de conflitos trabalhistas – pois é disso, afinal, que se trata.

Isso foi há mais de três meses e em nenhum momento desse período os magistrados e procuradores deixaram de receber a prebenda a que julgam ter direito. Como era de esperar, a Câmara de Conciliação não chegou a lugar nenhum, porque os magistrados não querem ceder e os Estados e a União não querem pagar.

Na prática, a AGU concluiu, por óbvio, que não há lei que ampare a extensão da ajuda de custo para moradia de todos os juízes e promotores do País. Informou que, nas negociações, surgiram duas propostas, ambas indecentes: aumentar o teto do funcionalismo para incorporar de vez o auxílio-moradia aos salários dos magistrados e procuradores ou criar, por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional, um novo benefício, relativo ao tempo de trabalho na magistratura ou no Ministério Público.

No primeiro caso, que necessariamente teria de passar pelo Congresso, haveria um inevitável efeito cascata sobre os salários do funcionalismo, com consequências nefastas sobre as contas públicas; a segunda proposta não pode avançar neste ano, porque a intervenção federal no Rio de Janeiro impede a votação de emendas à Constituição.

Até que o STF decida o que fazer – e o histórico daquela Corte neste caso não autoriza nenhum otimismo –, o benefício continuará sendo pago, ao arrepio da mesma Constituição pela qual o Supremo deveria zelar.

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