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“Ou nós brasileiros nos unimos ou naufragamos”

"Ou nós brasileiros nos unimos ou naufragamos"

Luís Antônio Giron, IstoÉ

Visitar a biblioteca do apartamento do economista Eduardo Giannetti, em São Paulo, oferece mais do que a oportunidade de tomar contato com o estilo de vida despojado do mineiro de 61 anos que virou best-seller e palestrante-celebridade. Estar ali é como penetrar no seu pensamento nítido e racional. Muito alto, ele se move pelo recinto como a não ferir o equilíbrio do mobiliário e a ordem das estantes repletas de obras dos autores que o formaram: Adam Smith, Hume, Machado de Assis e Gilberto Freyre. A harmonia do ambiente contrasta com a desordem que assola a vida brasileira, tema que o preocupa. “Tento oferecer uma interpretação do Brasil”, diz, sobre seu 12º livro, “O Elogio do Vira-Lata e Outros Ensaios” (Companhia das Letras). Nesta entrevista, ele justifica a autodescrição de “profeta analítico” e se mostra otimista com o País, cujos problemas, crê, podem ser resolvidos se os brasileiros se reconhecerem naquilo que os une: a paixão, o improviso e a generosidade de um povo mestiço.

Em seu novo livro, você diz que falta juízo ao Brasil. Por quê?
Porque construímos uma floresta de palácios no meio do cerrado em um país que não tem saneamento básico, não resolveu o problema do ensino fundamental. Fizemos uma Copa do Mundo dispendiosa, construímos elefantes brancos de estádio em um país que não tem o mais elementar da saúde pública. Isso provocou de certa maneira os protestos de junho de 2013, que pedia “padrão Fifa” para o transporte coletivo, pelo menos…

O suposto o “padrão Fifa”…
Sim, o que parecia o “padrão Fifa”. O Brasil assinou o acordo nuclear com a Alemanha, custando bilhões de dólares, com uma população carente de saneamento, de transporte público, de dignidade elementar na vida material. Isso é uma falta de juízo completa. Nós somos o país da Zona Franca de Manaus. Imagine o delírio de planejamento que é pegar a indústria eletroeletrônica de um país e transportá-la para o meio da floresta amazônica. E ela está aí até hoje. O subsídio custa mais de R$ 20 bilhões por ano. É uma sandice econômica. Eu brincava que se um inimigo declarado da indústria brasileira quisesse destruí-la, dificilmente ele inventaria um ardil tão perverso quando esse: vamos jogar toda a indústria eletroeletrônica no meio da selva, protegida por uma estufa de proteção de subsídios, e transportar tudo por caminhão. Isso é falta de juízo.

Além de juízo, o que falta ao Brasil?
O nosso grande déficit civilizatório é o ensino fundamental de qualidade. Em relação aos Estados Unidos, nos atrasamos um século na universalização do acesso ao ensino fundamental. Agora o problema é outro, porque o avanço quantitativo escancarou o déficit qualitativo. Nosso sistema de educação produz analfabetos funcionais, inclusive no ensino superior.

Mesmo assim, o Brasil ainda tem jeito?
É lógico que o Brasil tem jeito. Eu já vi o País cair e se reerguer várias vezes. E não vai ser diferente agora. O que chama atenção no Brasil é como a nossa imaginação é volátil. Quando as coisas vão bem, o País entra em estado de euforia. Isso aconteceu no final do segundo mandato do Lula. De repente, perde-se a esperança e se encaminha para o desengano e o pessimismo terminal. Não éramos tão bons antes nem somos tão ruins agora. Nos momentos de euforia, a minha disposição é contê-la. Assim como, nos momentos de desengano, eu meu me sinto impelido a fazer o contrário: tentar argumentar que não podemos confundir o circunstancial da conjuntura com o permanente da cultura. Agora a gente precisa se cuidar um pouco da volatilidade extrema da imaginação. A realidade nunca muda tanto assim. A gente vai do céu ao inferno com rapidez.

Isso explica também a incapacidade de os brasileiros aceitarem os argumentos uns dos outros?
Fico horrorizado com essa situação. A interdição do debate no Brasil se acirrou na campanha eleitoral de 2014, que foi de uma violência inaudita e deixou cicatrizes até hoje não curadas. O processo começou antes, mas se acirrou ali. Os ânimos estão exacerbados e a capacidade de escuta e atenção a opiniões diferentes está enfraquecida. Mas não é um quadro permanente. Em algum momento vamos superar.

As eleições no Brasil serão afetadas pelas fake news. O que leva as pessoas a acreditar no que é falso?
Essa é uma pergunta que eu procuro responder: como chegamos a acreditar no que acreditamos? Uma coisa presente nesse campo é que gostamos de ter reforço nas nossas crenças. Friedrich Nietzsche diz que uma crença forte revela apenas a sua força — e não a validade daquilo que você acredita. Se você acredita com muita força em alguma coisa, isso não é sinal de que é verdadeiro. É sinal apenas que você acredita com muita força. Nietzsche vai além: se você acredita com tanta força nisso, é melhor ficar com um pé atrás.

À luz do autoengano, qual o cenário possível?
Eu vejo dois cenários no segundo turno: ou veremos o enfrentamento de dois extremos, ou teremos pelo menos um candidato do centro reformista. É isso que está em jogo hoje no Brasil. É muito cedo ainda para apostar em dos dois cenários.

A eleição terá um componente de rinha de galo?
O cenário de enfrentamento está se delineando para a rinha de galo, até pelo temperamento autoritário dos dois candidatos que estão se posicionando na disputa dos extremos: Jair Bolsonaro e Ciro Gomes.

Bolsonaro e Ciro são farinha do mesmo saco?
Acredito que Ciro está dentro do campo democrático. Ele é parte do enredo da democracia brasileira. Discordo profundamente de muitas coisas que ele defende, mas respeito a legitimidade e a história dessa liderança. Jair Bolsonaro está fora do campo democrático. Ele não tem compromisso com a institucional idade da democracia brasileira. É um sujeito que elogia um torturador na hora de votar o impeachment, que acredita que o jeito de resolver o problema da segurança é armando a população. É um sujeito que declarou que o Fernando Henrique, quando privatizou a Companhia Vale do Rio Doce, deveria ser fuzilado, e que não demonstra o menor apreço por tudo o que conquistamos no Brasil ao fazer a redemocratização.

Em meio à greve dos caminhoneiros, você alertou para uma possível rebelião tributária. Qual o impacto que ela pode ter na economia?
Há um histórico de rebeliões tributárias desde a Antiguidade. São situações em que o governo instituído perde a legitimidade para tributar. Na Revolução Francesa, o estado monárquico falido queria aumentar a carga tributária de quem não aguentava mais pagar. No Brasil, tivemos a Inconfidência Mineira e a Revolta do Vintém, no início da República: o governo tentou aumentar o preço do bonde e foi um caos no Rio. Tiveram que retroceder, como nos 20 centavos em 2013.

Qual o principal problema econômico do Brasil?
É o problema fiscal. Estamos em um país em que a carga tributária atinge 34% do PIB – portanto, de cada R$ 100 que ganhamos com nosso trabalho o governo arrecada R$ 34. Estamos em um país em que o déficit nominal é 6% do PIB, ou seja, o país gasta 6% do PIB a mais do que ele arrecada, ou seja, 40% da renda nacional brasileira transitam pelo setor público. E o governo não entrega nem sequer saneamento básico. Metade dos domicílios brasileiros não tem coleta de esgoto.

Isso cria a possibilidade de uma rebelião social?
Rebelião social é rebelião tributária. As pessoas não suportam mais políticos que não nos representam e nos tributam pesadamente. Não há contrapartida que justifique o tamanho do ônus que é carregar esse Estado nas costas. Nossos indicadores sociais são deploráveis, muito abaixo do nosso nível de renda. O Bolsa Família, que é um programa que impacta a vida de milhões de brasileiros, representa 0,5% do PIB — é a migalha que cai da mesa. Precisamos entender o que há de profundamente errado em nossas finanças públicas. Senão vamos continuar afundando. Aí entra todo o rol de questões: Previdência Social, dívida pública, apropriação de gastos públicos por quem não precisa deles, o federalismo truncado. Temos Brasília demais e governos locais de menos. As funções foram transferidas para estados e municípios, mas o poder de tributar continua concentrado na União. Por que o dinheiro precisa ir para Brasília e depois voltar? Em um Estado federativo, o dinheiro deve estar perto de onde é arrecadado.

É preciso reorganizar o sistema?
O ideal seria descentralizar todo o sistema. As coisas importantes na vida do cidadão ocorrem no município, onde ele mora. Segurança, saneamento, saúde, educação, transporte são questões locais. A gente precisa ter menos Brasília e mais Brasil.

Até que ponto a Seleção Brasileira nos representa?
O talento do jogador brasileiro é puro vira-lata. As áreas de expressão cultural democráticas são grandiosas, como o futebol e a música popular. A gente precisa ter isso para tudo, para a economia, ciências, a medicina. Os três gênios universais brasileiros são vira-latas: Aleijadinho, Machado de Assis e Pelé. Não têm outros desse porte na cultura brasileira — não por acaso, são afro-brasileiros.

Ser vira-lata seria uma vantagem competitiva?
Nelson Rodrigues está coberto de razão ao falar do nosso sentimento crônico de inferioridade diante do estrangeiro, especialmente dos povos civilizados, dos ricos. O que eu contesto é chamar isso de complexo de vira-latas. Eu prefiro ser o vira-lata do que ser o poodle da madame ou dobermann da polícia. O verdadeiro complexo de vira-lata — e aí eu viro o Nelson Rodrigues de ponta-cabeça — é a ideia de que há algo errado em ser vira-lata. Nossa condição vira-lata talvez seja o que há de melhor em nós. É a nossa miscigenação. Não apenas no plano genético e biológico, mas principalmente no campo espiritual e cultural. É também a nossa capacidade de desfrutar o momento, a nossa amabilidade sem cálculo, a nossa alegria espontânea, o nosso doce sentimento da existência.

Como revalorizar o vira-lata?
O que envenena o Brasil é a desigualdade. Se resolvermos a desigualdade obscena e tivermos uma vida pública melhor resolvida, o espírito vira-lata poderá alcançar um outro patamar.

Para isso, precisamos de coragem e ousadia. Onde buscâ-las?
Em nós mesmos, e na coragem de enfrentarmos nossos problemas reais, unindo forças, e não dividindo. Ou nos unimos ou naufragamos.

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