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A desídia do Congresso

A desídia do Congresso

Parlamentares estão muito aquém do que o cargo exige. Entretidos com seus interesses, mostram-se incapazes de detectar agressões ao interesse público

Editorial, Estadão

Com crescente sem-cerimônia, o Poder Judiciário vem invadindo a seara de outros Poderes, especialmente a do Legislativo. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o art. 102 da Constituição era amplo demais, e alterou o alcance do foro por prerrogativa de função conferido aos parlamentares. Mais do que uma decisão judicial, os ministros do Supremo pareciam votar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), o que é competência do Legislativo, e não do Judiciário.

Diante desse abuso institucional, é muito estranha a passividade do Congresso, como se essa confusão de funções não lhe dissesse respeito. A respeito do julgamento do STF sobre o foro privilegiado, por exemplo, viu-se apenas reação pontual e efêmera de alguns parlamentares, que ameaçaram modificar as competências de foro previstas para os membros do Poder Judiciário. Incapazes de enxergar o real alcance do problema, trataram o assunto como comezinha questão.

Quando o Poder Judiciário invade a esfera de atuação do Poder Legislativo, há uma usurpação das prerrogativas dos parlamentares, com sérios efeitos sobre o bom funcionamento de um Estado Democrático de Direito. Quem não recebeu voto popular não tem direito de legislar nem competência para isso, assunto próprio do Legislativo, cujos membros são eleitos pelo voto popular para essa finalidade. Trata-se de um princípio fundamental. Caso contrário, o povo se veria privado de seu direito de determinar os rumos do País.

Não pode haver exceções a essa regra. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, diz taxativamente a Carta Magna, em seu art. 1.º, parágrafo único.

É o Congresso, por ter recebido o voto popular, que deve dirimir as questões políticas nacionais. São os representantes escolhidos pelo eleitor que devem estudar e aprovar eventuais mudanças na Constituição e nas leis. E, obviamente, os parlamentares não têm o direito de dispor das prerrogativas do Congresso. Senadores e deputados não são proprietários do Legislativo e, portanto, no final de seus mandatos devem entregar os cargos com as mesmas prerrogativas e funções que receberam. É dever do cargo parlamentar assegurar o respeito à Constituição.

Nesse sentido, o princípio da separação dos Poderes é inegociável. O Executivo não pode usurpar as funções do Congresso. Basta ver as restrições aplicáveis às medidas provisórias, que necessariamente devem passar pelo controle do Legislativo. Como é natural, haveria uma pronta reação do Congresso se o Palácio do Planalto, por absurdo, baixasse um decreto modificando a Constituição.

No entanto, quando as agressões à Constituição e ao ordenamento jurídico partem do Judiciário não se vê uma resposta à altura do Congresso. A impressão é de que o abuso por parte da Justiça é tido como coisa menor. Seria uma consequência forçosa do sistema, sem solução.

Tal visão institucional é profundamente equivocada. Na República, não existe poder sem controle. Todos, também as autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário, devem respeitar a Constituição. E quando alguém passa dos limites, é preciso que os outros Poderes estejam atentos para a indispensável reação, dentro, como é natural, dos caminhos institucionais previstos. O que não se pode admitir é a omissão perante assunto de tão grandes consequências para o País.

Essa inacreditável desídia do Legislativo em defender suas prerrogativas evidencia, uma vez mais, a qualidade da atual composição do Congresso. Em regra, os parlamentares estão muito aquém do que o cargo exige. Entretidos com seus interesses, mostram-se incapazes de detectar as agressões que o interesse público sofre.

A República é o regime da responsabilidade. Sem exceções, deve-se exigir responsabilidade do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. Da mesma forma, também o cidadão deve ser responsável com o seu voto, não pondo no Congresso quem não defende o próprio Congresso.