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Para superar o ‘estresse hídrico’

Para superar o 'estresse hídrico'

Presidente brasileiro de Itaipu defende descentralizar hidrelétricas e diversificar a matriz energética para garantir segurança no fornecimento

Luís Fernando Wiltemburg, Folha de Londrina

Presidente do lado brasileiro da maior geradora de energia elétrica do Brasil e do Paraguai, a Itaipu Binacional, Jorge Samek comanda uma empresa que vai além da produção de energia. O complexo, que tem parque tecnológico e amplas ações para promover a sustentabilidade, a economia e o turismo da região onde a usina está instalada, foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como melhor experiência em tratamento de água do mundo. Nesta entrevista, o diretor, uma das 100 pessoas mais influentes do País segundo a revista Forbes Brasil, fala sobre a crise hídrica – que ele chama de “estresse hídrico” -, defende a necessidade das termelétricas e discute modais alternativos, como geradores de energia eólica e solar.

A anunciada crise hídrica não afeta a Itaipu?
Não, mas tem uma razão. Ela está muito bem localizada. Se está ruim (de chuva) em São Paulo e Minas Gerais, está bom em Goiás. Se está ruim em Goiás, está bom no Paraná. Como recebemos água de Brasília para baixo, se choveu no lago de Paranoá, aquela água, obrigatoriamente, vai chegar aqui. Isso tudo nos dá uma condição boa.

A energia gerada por Itaipu abastece quais regiões do Brasil?
Quando foi assinado o Tratado (de Itaipu) e depois, quando começou a ser gerada energia, toda distribuidora das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul compulsoriamente tem de comprar energia de Itaipu. Então, de Brasília para baixo, todas as usinas recebem proporcionalmente ao que consumiam em 1984. Por exemplo, a Copel: por mais que a companhia tenha um monte de usinas no Rio Iguaçu, seja superavitária em energia, assim mesmo, tem de comprar 6,2% de toda energia gerada em Itaipu. O estado que mais usa nossa energia é São Paulo, lá eram cinco distribuidoras e, na época, quando ficaram prontas a sétima e oitava unidades, somando todas as distribuidoras, em torno de 37% da energia gerada em Itaipu é consumida em São Paulo. Depois, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Abastecemos a Celesc em Santa Catarina, três distribuidoras no Rio Grande do Sul, todas elas adquirem energia gerada em Itaipu.

Dá para identificar qual o papel da Itaipu na energia que chega ao consumidor?
Nós já chegamos a fornecer 26% do que era consumido de energia elétrica no Brasil, no melhor momento. Claro que tinha muito menos usina hidrelétrica. Cada dia que faz uma nova hidrelétrica, termelétrica, ou uma eólica, ou uma solar, nós diminuímos a quantidade (proporcional) de energia que fornecemos para o contribuinte. Hoje estamos na casa dos 17%, caindo para 16%. Mesmo produzindo mais. Nosso melhor ano foi o de 2013, a usina foi projetada para produzir 75 milhões de megawatt hora, e no ano de 2013 nós produzimos 98,63 milhões de megawatt hora. Nós operamos no Sistema Integrado Nacional (SIN). Todas as regiões estão interligadas. Com isso, daí se aproveitam os períodos hidrológicos. Agora, por exemplo, é um período superpositivo na Região Norte. Quando o Nordeste está ruim, opa! Segura lá, porque a forma de se armazenar energia é no reservatório. Aí, tem época que inverte. Outubro, novembro, o Rio Tocantins fica com pouquíssima água, mas é o melhor período que nós temos na Região Nordeste ou Sul, daí o Sul manda energia para cima. Então, fica esse transporte permanente usando os melhores regimes pluviométricos para fazer o melhor aproveitamento da água.

Com tanta hidrelétrica e tanto rio no Brasil, por que se fala hoje em possibilidade de racionamento e se depende tanto de termelétricas?
O sistema todo nosso foi consolidado por usinas hidrelétricas. Quando construiu Itaipu e Tucuruí, nos anos 1980, o Brasil, que crescia 12% ao ano, caiu vertiginosamente e tivemos duas décadas perdidas. Produção muito devagar e, ao não crescer, não precisa de energia. Aí, tivemos exatamente 27 anos sem construir hidrelétricas, nenhuma termelétrica, nenhuma nuclear. O Brasil parou, nunca mais se falou em fazer novas hidrelétricas. Entre 2000 e 2001, ocorreu uma coisa muito parecida com o que ocorreu em 2014, quanto tivemos a pior seca em todos os 82 anos em que é feita medição hidrológica. Como é que consegue enfrentar, se tem toda sua matriz quase que organizada para trabalhar com hidrelétrica e, de repente, não chove? Então o Brasil faz um imenso investimento em 2001 em termelétrica, a maioria movidas a gás. Hoje temos duas Itaipus de termelétricas instaladas no Brasil, feitas não para gerar o tempo todo. Só que as chuvas não vieram e estamos rodando com quase todas as termelétricas. E essa energia é muito mais cara que a hidrelétrica.

Mas é o caso de investir em mais hidrelétricas, planejar mais os reservatórios, ou é imprevisto?
O sistema EPE (Empresa de Planejamento Energético) trabalha com previsões de dez, 20 e 30 anos. Então, como houve a retomada dos investimentos, nós temos hoje 333 empreendimentos em construção no Brasil de hidrelétricas, das grandes, médias e das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Por que são feitas tantas usinas? Porque os regimes pluviométricos são diferenciados. O Brasil tem mais de 2,2 mil usinas na sua totalidade. Dessas, 100 são significativas e, destas, tira 20 que têm potência acima de 1,5 mil megawatts. Então, boa parte da energia sai dessas, mas são complementadas pelas outras. O Brasil tem que avançar porque até agora só usou 40% do seu potencial hidráulico. O grande potencial brasileiro das usinas grandes está na Região Norte. É a região do Tocantins, do Pará, que vai ser o maior produtor, que mais energia vai ter. Essas novas usinas, como tem projeto na sequência de cinco grandes usinas no Rio Tapajós, estão longe dos maiores centros de consumo. Coisa que a termelétrica ou a nuclear, você faz do lado do centro de consumo.

No Brasil, temos potencial muito grande de energia eólica e solar, mas não vemos tanta ênfase aparentemente dada a esses modais. O que falta para avançar?
A eólica foi o modal que mais cresceu no Brasil. A gente não vê no Paraná, mas no Oeste de Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e em todo o Nordeste brasileiro, vai levar um susto. Nós passamos de 0,2% em 2003 e vamos chegar, no final de 2017, em 9% do potencial instalado no Brasil de eólica. Qual o problema? Quando não venta, não produz energia. Então, imagine, na cidade: hospital, metrô, sistema bancário, veículo de comunicação, tem que ter segurança energética. Segurança energética você tem com hidráulica porque você reserva a energia no reservatório. Você tem com urânio porque, com pouquíssimo combustível, produz muita energia. Você tem no gás. Para nós, no Brasil, foi uma benção a tal da usina eólica, porque ela entra como complementar. Por exemplo: com todo o parque eólico em construção e já funcionando, podemos fazer economia de água nos reservatórios. Tendo vento, eu produzo. O vento resolveu fazer uma greve, imediatamente aciono uma hidráulica. Eu posso armazenar a energia em forma de água nos reservatórios. Então, como forma complementar, é um baita de um casamento. A energia solar é a mesma coisa, mas tem o problema que, à noite, não produz energia. Num dia nublado, se eu depender de energia solar, estarei “roubado”. Para essa parte de produção de energia em residência, esquentar uma caldeira, é uma boa solução. Mas quero ver pegar uma fábrica de energia solar e botar para gerar. Se falar que ela vai tocar a Cocamar, não vai. A fábrica da Renault, não tem como. Tem que ter energia firme e que não pode ficar à mercê de situações em que não se tenha o controle e a certeza de produzir essa energia. Mas veja: não estou querendo dizer que não devemos avançar na solar, por exemplo. Eu tenho certeza de que, com a evolução tecnológica, com o que avançamos nos últimos anos, nós vamos conseguir baterias cada vez mais eficientes e menos poluentes para armazenar energia.

Mas será possível, um dia, o Brasil substituir as termelétricas por eólicas?
Substituir todas seria temerário. Os ventos, quando se vê o atlas eólico, os melhores ventos estão no Rio Grande do Sul e no Nordeste. Mas, por mais que se encha, não tem a segurança que tem numa termelétrica em uma eólica. A termelétrica independe da natureza. Tendo óleo ou gás, ou carvão, é a certeza de que a população não vai ficar sem energia. Eu não posso ficar com um processo na geração de energia sem segurança energética. Mas cada uma tem seu papel. Estou muito convencido de que, no Brasil, um país que pega sol o ano inteiro, daqui a 20 anos, o seu filho ou seu neto vai viver em outro tempo. A tecnologia avança com essa velocidade do ponto de vista de que, daqui a pouco, a eólica e a solar vão ganhando uma escala a tal ponto que não tenho dúvida de que a energia do futuro será a solar. O avanço que deu na eólica em dez anos mostra que caminha para isso.

Como é o relacionamento entre as diretorias brasileira e paraguaia da Itaipu e como está a discussão da compra da energia elétrica produzida pelas turbinas paraguaias pelo Brasil?
A Itaipu é um processo que muita gente não conseguiu compreender que não se trata de uma obra de engenharia civil, mecânica e elétrica. São três engenharias. A primeira é a financeira, que foi feita para construir a Itaipu, hoje serve de modelo para o mundo inteiro. Toda essa usina foi construída com financiamento, até porque o Brasil e o Paraguai, de capital inicial, foram colocados US$ 100 milhões para uma empresa que custa US$ 27 bilhões. Onde havia dinheiro, a Itaipu foi atrás e se endividou, para pagar com a própria geração de energia. Em fevereiro de 2023, estaremos com a usina 100% paga. A empresa é metade paraguaia e metade brasileira. Então, o Paraguai avisa, com um ano de antecedência, quanto prevê consumir de energia. Neste momento, estão consumindo perto de 10 milhões de megawatt hora. Tudo aquilo que o Paraguai não consome, o Brasil fez uma lei e assumiu o compromisso de que consumiria. Por quê? Temos 200 milhões de habitantes, parque industrial e o Paraguai vem, ano após ano, aumentando sua cota-parte. Quando terminar de pagar a dívida, terá de ser feita uma nova renegociação e isso vai ser definido em fevereiro de 2023. A outra obra de engenharia é ligada à nossa chancelaria, é uma obra de engenharia diplomática.

Como se pode, com dois povos distintos, duas culturas distintas, línguas diferentes, costumes diferentes, fazer um empreendimento único?
Isso também é uma verdadeira obra, que serviu de modelo para onde tem rios dividindo países para fazer hidrelétricas. Nosso modelo é muito bem sucedido. Por milhões de anos o Rio Paraná passou por aqui e não produziu um megawatt ou um real, ou um guarani, mas a partir da construção, temos hoje um empreendimento que vale US$ 80 bilhões, esse é o preço da Itaipu. É uma empresa modelar e que, por acaso, produz benefício tanto para o Brasil quanto para o Paraguai. A energia que o Paraguai não usa, recebe US$ 8 por megawatt hora além dos US$ 37, no que chamamos de cessão de energia. E isso acaba acarretando muito dinheiro para o Paraguai fazer frente aos problemas sociais e à ampliação de atividades de que tem necessidade. Então, mesmo em processo de pagamento da dívida, assim mesmo traz inúmeros benefícios a mais, além de dotar as duas nações de energia elétrica.

Dentro do regime binacional da Itaipu, como é a transparência? Como o cidadão brasileiro pode ter acesso aos contratos e aos pagamentos feitos pela empresa?
Quando foi feito o Tratado, não podíamos aplicar a lei brasileira na Itaipu, ou estaríamos fazendo uma interferência indevida no Paraguai. E o Brasil também não podia acolher a lei paraguaia. Por isso foi feito o Tratado. Nós não temos a (Lei nº) 8.666 (Lei de Licitações), nós temos a Norma Geral de Licitação (NGL), que é nossa lei de licitação. Só que ela incorporou boa parte do que tem na 8.666, do que tem na lei paraguaia, mas fomos buscar também como funciona nos Estados Unidos e na Europa para aperfeiçoar. Nós aplicamos o princípio da Lei Sarbanes-Oxley. Nós aqui fazemos pregões digitais, somos auditados obrigatoriamente, a cada dois anos, por uma auditoria internacional e somos obrigados a cada dois anos a substituí-la. Aí temos a auditoria interna, temos ouvidoria, temos o controle da Eletrobras, temos o controle da Ande, o Conselho de Administração checa tudo isso e só temos um cliente na Itaipu, a Eletrobras. Que faz a distribuição e é toda controlada pelo Tribunal de Contas da União. É uma empresa brasileira e paraguaia. Esse é o problema de fazer tratado: tem de ser aprovado pelos dois Congressos, pelos dois Senados, e é uma discussão terrível, porque os dois países sempre acham que estão perdendo. E, como os dois reclamaram muito, acho que saiu uma lei justa e conseguimos os resultados que obtemos.

Você gosta de ressaltar que a Itaipu não produz apenas energia.
A Itaipu tem um parque tecnológico, estamos desenvolvendo carro elétrico, tecnologia, aqui dentro da Itaipu funciona universidade de energia elétrica, energia mecânica, matemática, a Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana) e a Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná) estão aqui dentro, nossos laboratórios à disposição para formar grandes engenheiros, nós trabalhamos com conceitos de sustentabilidade em uma área de 1 milhão de hectares, por isso que a ONU nos dá o prêmio de melhor experiência de tratamento de água do mundo. Recuperamos toda nossa mata ciliar. A Região Oeste é a maior produtora de suínos, aves e gado de leite. Essa transformação da proteína vegetal na proteína animal foi a que fez o desenvolvimento da região e temos cidades com os melhores índices de desenvolvimento humano do Paraná. Só que essa transformação produz muito dejeto, que estava poluindo o lençol freático. Tudo isso está virando energia e adubo orgânico em projeto nosso relacionado a biogás, à produção de energia a partir de dejetos, o projeto Cultivando Água Boa, criação de peixes, cuidados que temos com comunidades indígenas. Não tem indígenas no Paraná e no Sul do Brasil com um trabalho como Itaipu faz com suas três reservas. Todo mundo com casas, ensino bilíngue, todas as crianças na escola e zero de mortalidade infantil, não tem subnutridas. Merenda escolar orgânica, já tem 16 municípios da região que só oferecem merenda escolar orgânica, aplicação pelo próprio SUS para cura fitoterápica, tudo isso é um cabedal, são 65 ações que compõem o Cultivando Água Boa. E a melhoria de vida do Paraguai, não temos mais nenhuma rusga. Tudo isso é o que fazemos além de produzir energia.