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“Obama quer transformar a Síria em um novo Iraque”, diz cineasta

A cineasta síria Halla Diyab, que escapou de ter o braço cortado por criticar opressão do Islã às mulheres no país

da Folha

Impedida de voltar à Síria por perseguição religiosa, a cineasta Halla Diyab se tornou uma das principais vozes na Europa contra a intervenção militar em seu país. Ela diz ainda acreditar numa saída pacífica para o conflito e afirma que uma ação armada, além de não garantir o fim do uso de armas químicas, vai agravar o sofrimento da população civil.

Diyab acusa o ditador Bashar al-Assad de cometer atrocidades contra seu povo e o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, de querer transformar o país em um novo Iraque.

Em entrevista à Folha, ela também falou sobre as consequências de ter produzido uma série de TV com críticas à opressão das mulheres no islã. Acusada de pregar valores ocidentais, foi perseguida por clérigos e escapou para não ter um braço cortado como punição.

Folha – Você se tornou uma das principais vozes contra a intervenção na Síria. Por quê?

Halla Diyab – Porque eu acredito na paz. Acredito que a Síria pode voltar a ser um país pacífico e que os sírios podem recuperar seu orgulho e voltar a ser cidadãos, em vez de refugiados.
Intervenção militar significa guerra. Não acredito no uso da força para implantar a democracia nem na violência para garantir a paz. Uma ação militar transformará a Síria no campo de batalha de uma guerra maior envolvendo Irã, EUA e Rússia.

Um dia, vão perguntar o que as pessoas que tinham voz fizeram para defender o país neste momento da história. Para mim, a opção pelo silêncio é covarde e imoral.

É nossa responsabilidade mostrar ao mundo que a intervenção militar pode agravar a crise humanitária.

Assad é arrogante e orgulhoso, vai continuar lutando para se manter no poder. Os rebeldes querem impor a ideologia do islamismo.

Ninguém diz nada sobre a população síria.

Há crianças fora da escola há dois anos. Uma guerra não vai resolver isso.

Acredita que os EUA vão atacar a Síria, como defende o presidente Obama?

Obama disse que Bashar al-Assad seria punido caso ultrapassasse a linha vermelha [o uso de armas químicas]. Agora precisa manter sua palavra perante a comunidade internacional. É por isso que ele quer ir à guerra.

Acho que Obama não se importa com o povo sírio, e sim com o risco de que armas químicas caiam nas mãos de jihadistas, que poderiam usá-las contra o Ocidente.

Os EUA deveriam esperar o fim da investigações das Nações Unidas. Em vez disso, Obama está repetindo o que George W. Bush fez no Iraque. É a mesma ideologia de supremacia mundial, de que os EUA podem fazer o que quiserem no mundo.

A intervenção militar não será tão limitada como ele diz. Será um pontapé na porta que pode levar a um conflito maior em toda a região.

Assad é acusado de cometer um genocídio no país. Deixar de intervir não significa lavar as mãos sobre isso?

Em dois dias, o Ocidente fez mais do que nos últimos dois anos, ao se unir para viabilizar uma guerra contra a Síria. Por que os países não se uniram antes para encontrar uma saída política que possa salvar o país?

As vítimas dessa guerra não serão Assad e sua família, que vão encontrar uma forma de fugir em segurança. Serão as pessoas comuns, as mães e os jovens sírios.

Vai haver mais refugiados e mais mortes. Para onde a população vai fugir? Já há 500 mil sírios sobrevivendo de doações no Egito, na Jordânia e no Líbano. Mães estão vendendo filhas a jihadistas em troca de comida.

Apesar das atrocidades de Assad, as pessoas estão aterrorizadas com a ideia de uma invasão externa.

A guerra transformou o Iraque em um terreno fértil para o terrorismo. Nos últimos meses, houve 4.000 mortes no país por causa do sectarismo. A Síria pode acabar repetindo isso.

Segundo Obama, o ataque seria a única forma de deter o uso de armas químicas, que já matou centenas de civis sírios.

Não há como garantir que a intervenção acabará com o uso de armas químicas. Se o objetivo é punir Assad, é preciso apresentar provas e julgá-lo numa corte internacional. Não se pode destruir um país para punir um homem.

O Ocidente deveria fortalecer a oposição política na Síria, que está dividida e sem estratégia, e estimular iniciativas que possam conduzir a um governo de transição.

Não adianta bombardear as cidades e executar o líder, como fizeram com Saddam Hussein. O objetivo da ação deve ser a ajuda humanitária ao povo sírio, e não a luta por poder no Oriente Médio.

O que achou da decisão do Parlamento britânico contra o envolvimento do Reino Unido na intervenção militar?

Foi a decisão correta. Os políticos britânicos estão conscientes do que o Reino Unido fez no Iraque e no Afeganistão e não querem que isso aconteça de novo.

Não adianta invadir os países e depois ver uma repetição do que ocorreu em Woolwich [bairro de Londres onde o soldado Lee Rigby foi morto por radicais islâmicos, em maio deste ano].

O Parlamento deixou claro que antes de agir é preciso ver o resultado da investigação sobre o uso de armas químicas. Você não pode punir quem violou leis internacionais com uma ação que também viole essas leis.

Assad já disse que não vai renunciar. Se abrir mão de um ataque, o Ocidente não pode ajudá-lo a ficar no poder?

Quero ser bem clara nesse ponto. Desde que comecei a defender a paz na Síria, tenho sido acusada por muita gente de apoiar Assad. É imoral acusar alguém que defende a paz de apoiar um ditador ou um criminoso de guerra.

Defendo a paz porque acho que a guerra será um desastre para o país. Os sírios têm direito, assim como os americanos, de acordar e levar os filhos para a escola. As mulheres têm o direito de trabalhar, de ir ao supermercado. Não merecem ficar presas a uma guerra durante anos.

É possível buscar uma saída política. Se a comunidade internacional se esforçar, a situação pode ser resolvida sem mais mortes e mais sofrimento no país.

O que pensa de Assad?

Quando chegou ao poder [em 2000, no lugar do pai Hafez al-Assad], ele se apresentou como um líder liberal e secular, que levaria a Síria para uma nova era. Isso mudou ao longo do tempo.

Assad não entendeu e não soube lidar com a Primavera Árabe. Pensou que a população síria de 2011 era a mesma dos anos 1980, quando seu pai chefiou a repressão em Hama [em massacre que deixou cerca de 40 mil mortos, em 1982].

Ao se sentir ameaçado, ele criou um mecanismo para sobreviver com apoio de Rússia e Irã, que estão usando a Síria como instrumento para combater o Ocidente. O país ficou espremido nesse conflito.

Parte da sociedade síria também ajudou a manter essa ditadura. Ditadores não vêm de Marte. Eles se alimentam do medo das pessoas, da incapacidade de dizer não. Durante muitos anos, as pessoas apoiaram Assad porque achavam que o regime protegia seus interesses.

Apesar de ser muçulmana, você foi alvo de uma “fatwa” e não pode voltar à Síria desde 2010. Como isso aconteceu?

Fiz uma série na TV síria que mostrava como a religião é usada no Oriente Médio, especialmente por clérigos, para manter a dominação patriarcal e oprimir as mulheres em nome do islã. E como a burca transforma as mulheres em criaturas invisíveis, marginalizadas.

Acredito que o uso de uma vestimenta deve ser opção da mulher, e não uma imposição religiosa. Um clérigo sírio editou uma “fatwa” contra mim, afirmando que eu estava promovendo ideias ocidentais. Eu deveria ser punida com a perda de um braço. Hoje, na guerra civil síria, há jihadistas que vão a campos de refugiados, pagam para uma mulher se casar com eles durante quatro dias e depois vão para o combate, acreditando que chegarão ao paraíso. Isso é feito em nome da religião.

Como mudar essa situação?

Acho que a única saída é a educação. As escolas precisam ensinar direitos humanos, parar de falar só em religião e falar em tolerância.

O Ocidente ainda nos vê como bárbaros e acha que precisa de bombas para lidar com o Oriente Médio. E nós colaboramos com isso quando matamos em nome da religião e deixamos que ela controle nossas vidas.