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Justiça negocial

Estamos prestes a viver o fast food do Judiciário

Augusto de Arruda Botelho

A solidez da democracia, a conquista dos direitos civis, Philip Roth, a cheesecake. Os EUA são um exemplo para muitas coisas, mas com certeza há algo dos americanos que não devemos imitar: seu sistema de Justiça criminal.

Com a maior população carcerária do mundo, o segundo maior índice em mortes por arma de fogo, dezenas de condenados à pena de morte que têm suas sentenças revistas por erros processuais grotescos, e com taxas de criminalidade que em muitos estados só aumentam, fica fácil concluir que a política de segurança pública americana e o reflexo dela no dia a dia de sua Justiça falharam.

Recentemente, em uma manifestação do nosso novo ministro da Justiça, Sergio Moro, foi dito que no Brasil nós devemos aplicar algo semelhante àquilo que os americanos chamam de “plea bargain”, que nada mais é que um acordo entre o réu e a acusação para a aplicação imediata de pena–precedida obviamente de uma confissão–, poupando-se assim tempo e trabalho, de modo a desafogar o Judiciário.

Em nossa versão, pelo que foi tornado público, os acordos não se aplicariam aos casos de crimes patrimoniais, tais como furto e roubo, ou aos casos de tráfico de drogas. Em um primeiro momento, a medida parece digna de vários aplausos. Mas não é.

Embora a eficiência da Justiça brasileira seja um ideal a ser perseguido, a otimização que se pretende não será alcançada a partir desses acordos; afinal, a grande massa dos processos criminais refere-se justamente a crimes patrimoniais –aproximadamente 37% dos presos no Brasil– e ao tráfico de drogas, excluídos da proposta de Sergio Moro.

Há, portanto, uma incoerência entre o discurso e o que a realidade demonstrará, pois a Justiça como um todo –polícia, Ministério Público e juízes– permanecerá sobrecarregada com os mesmos processos que hoje a sobrecarregam, aprisionando jovens, negros, pobres, primários e com baixa escolaridade.

Se a otimização da Justiça não será o resultado da adoção dessa forma negocial de julgar, temos por outro lado duas preocupantes consequências dessa inovação. A primeira e mais óbvia é o abandono das garantias processuais.

Em nome de uma já demonstrada falaciosa otimização, as garantias democráticas de um devido processo legal serão renunciadas, ainda que sob a anuência da parte interessada. Desse modo, nulidades não mais serão apreciadas pelo Poder Judiciário, pois não haverá processo. Ilegalidades cometidas pelas autoridades deixarão de chegar ao conhecimento da Justiça, pois não haverá mais processo.

Somado a isso, a adoção desses acordos terá consequência reversa à que se pretende atingir: vivenciaremos o aumento da população carcerária. Sim, afinal, os clientes de tais acordos, mesmo excluídos os presos por crimes patrimoniais, serão os mesmos pobres e jovens que — sem uma defesa técnica– sucumbirão ao tentador apelo (para não dizer à pressão) de confessar e pretensamente resolver seus problemas.

A introdução de técnicas de justiça negocial é algo que há muito vem sendo discutido pelos especialistas da área, e talvez seja uma realidade da qual não poderemos escapar.

Concordando ou não com esse modelo de Justiça, certo é que a sua adoção deve se dar de maneira acurada, e não pirotécnica-populista. Justiça rápida nem sempre é justiça justa. Sob o argumento da celeridade, o que o futuro projeto pode propor é uma não justiça. Já vivemos um verdadeiro reality show do Poder Judiciário; agora, estamos prestes a viver a sua forma fast food.

Augusto de Arruda Botelho
Advogado criminalista, ex-presidente e conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

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https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/01/justica-negocial.shtml